O alarme
Perdoem-me o desafogo pessoal de contar o que de fato me ocorreu, mas prometo que essa pequena atividade criativa pode ser interessante e, além do mais, esse tipo de narrativa pode vir com uma lição de moral, “concordatória” (segundo pedido de desculpas desta edição. Ando gostando de brincar com neologismos).
Pois bote aí na sua cabeça, já que não posso pedir para fechar os olhos e imaginar porque, bem, sem a visão eu não consigo seguir adiante. Cheguei em casa, tem uns três domingos, e lá pras dez da noite o alarme de um carro disparou. Imagine que estou de frente para você, leitor e leitora, e começo a imitar os barulhos do alerta. “PI PI PI PI. UOOOOOOOOON. NINU NINU NINU. FUUUUUUUUI? FUUUUUUUI? TUTUTUTUTU”. Chatinho, né. Pois o danado estava fazendo essa afronta bem debaixo da minha janela, na posição exata em que a ilusão de ótica da distância colocava seu paralamas na linha certinha do começo do batente e o para-choques certinho no final dele. E o som comendo pro alto. Bem no quarto.
O alerta do carro desatinou a tocar e não parou mais. A rua foi ficando vazia, meia noite e tantas, o que era chatinho foi ficando chatão e depois irritante e insuportável logo em seguida. Some aí o ruído initerrúpito e acentuado com a tranquilidade do fim de noite dominical tendo ainda o sono que vinha chegando. Uma, duas da manhã. Não veio dono, não havia planos para desligar a porcaria. A polícia foi chamada. Três, quatro da matina e nada. Os guardas chegaram, olharam, tentaram abrir o veículo, o capô do motor. Nada. Passaram os dados para a central deles para ver se podia ser fruto de roubo ou furto. Era nada. Não podiam abrir a porta à força, causar dano ao patrimônio privado. Meteram uma multa e vazaram.
O alarme não parou. Eu não dormi. Pra situação ficar ainda mais dramática, o alarme seguia a sequência que pontuei em caixa alta aqui em cima e depois parava por quinze segundos. Sim, claro que eu contei. Depois, sucedia mais uma rodada dos apitos. Nessa altura do campeonato, a pequena enfiou o travesseiro na cabeça e conseguiu se entregar num sono torno, mas obrigatório para quem precisava acordar às seis. E a surpresa toda aconteceu com ela.
O alarme só desligou quando já faltavam quinze minutos para as seis da manhã. E esse foi, pasmem, o alarme que acordou a pequena. Ela despertou, não com algum barulho ou sinal, mas com o silêncio. Pela janela, ao se levantar para ter certeza de que não se tratava de sonho mal dormido, ela viu o carro indo embora. Mais tarde, quando desci, o dono da floricultura disse que era uma enfermeira do hospital que tem aqui no quarteirão do lado. “É, ela sempre para aqui. Meio folgada ela, viu”. Eu percebi.
Sabem o silêncio? Apreciem, gente. De verdade.