A enfermeira
De novo, o estômago. Sempre me foi o lugar das dores. Depois de uma noite das mais mal dormidas, lá me veio justo o bucho com penalizações. Doía à beça, primeiro as fincadas e depois o nó em fluxo constante. Duas horas em agonia e bater o martelo ficou fácil. Eu precisava ir para o hospital.
Era uma mistura de ódio e culpa. O carro, lá embaixo, com o alarme disparado há tanto tempo e eu na janela, curvado e imaginando todos os tipos de atrocidades que eu poderia cometer sem ser visto. Roguei pragas pesadas contra o veículo, seu dono e as próximas gerações dele e dos futuros donos. Pensei em descer, jogar um tijolo no parabrisas, e puxar todos os fios debaixo do volante e voltar a dormir. Imaginei-me de pijamas soltando o freio de mão e empurrando por dois metros, vendo-o atravessar sozinho a avenida pompeia abandonado à própria sorte de alguém dar no meio e partí-lo em dois ou vê-lo simplesmente cair pela ladeira da rua da frente e ouvir o estrondo lá embaixo. Lá de longe. Eu não me importava, naqueles pensamentos nefastos, se iria acertar o muro de algum casal de idosos com dificuldades financeiras, se atropelaria algum cachorro ou trabalhador cansado, alguém em cima de uma moto entregando a comida de alguém, se o carro era roubado e o dono estava inconsciente em algum lugar, necessitando de auxílio.
Naqueles minutos, o diabo soprava nos meus ouvidos e eu atendia suas demandas com louvor, construía caos, sofrimento e destruição na minha cabeça em prol do descanso merecido. Liguei para a polícia. Eu tinha todos os direitos de um tratamento digno. Daí a vida me trouxe de volta com minhas algias estomacais. Cada espasmo era como se meu corpo disparasse o alarme “você não é especial, você não é especial”. Na ida para o hospital, duas quadras de casa, vi duas viaturas chegando.
No hospital, as injeções não faziam efeito, os remédios não tiravam a dor. “Olha, se não parar de doer, você vai ter de ficar internado”, me disse o médico. Pedi para ficar um pouco no escuro e apagaram a luz. E foi no breu que ouvi uma voz de mulher: “Oi menino. Eu sou a enfermeira do turno agora e fiquei sabendo que você tá com dor de estômago faz um tempão, né. Olha, eu trouxe uma coisa aqui que eu faço em casa, é um remedinho de ervas. Acho que vai te fazer bem. Mas não pode falar pra ninguém porque pode me dar problema, mas é tudo natural aqui, ó. Mal não vai te fazer”.
Ela me tirou a dor com a mão. Dois minutos e eu não sentia mais nada, o corpo relaxado. O médico até me dispensou. Antes de sair, perguntei da enfermeira do turno. Queria lhe agradecer o amparo, a valência, o achego. O atendente do andar me disse: “Olha, eu deixo seu agradecimento aqui, mas ela teve uma emergência e não volta mais hoje. Parece que o carro dela disparou o alarme na rua e um guincho levou embora. Ela saiu apressada pra tentar resolver. Poxa, uma pena ela não estar aqui. Ela ia adorar falar com você. Se ao menos alguém tivesse avisado aqui em vez de fazer levar embora o carro dela. Tadinha”.
Minha dor de estômago voltou.
Obs.: Este conto surgiu depois do desabafo da edição anterior e vai fazer bem mais sentido se você souber o que aconteceu aqui.