A falsidade

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Perspectivas lhe fugiam desgarradamente pelos campos imensuráveis da ideia. Na verdade quem se encontrava preso era ele próprio, acorrentado num estilo de vida desencantado. Sentado na cadeira velha da cozinha, permitia lhe distrair os constantes ruídos que barulhenta fazia e lhe tirava a atenção das tarefas realmente dignas de foco.

Seu pensamento era outro. Considerava todos aqueles rabiscos uma verdadeira perda de tempo, mas já tinha se conformado que a vida era tão somente um finito extravio do tempo. Considerava, naqueles tempos inferiores, que a dádiva da existência era, na verdade, um fardo espinhoso com a capacidade única de se sobrecarregar com ranços e lástimas. Nenhuma promessa lhe era palpável. Ficava personificando-as como ovelhas berrando ironicamente enquanto desapareciam no descampado frio que inventara.

E daí lá foi ele, o Cleber, voltando da faculdade para casa quando bateu um siricutico no estômago, aquela coceira gostosa do apetite, a fome lascada. Pediu um especial pro seu Oswaldo e esperou encostado na mureta do consultório dentista que, mesmo sem permissão, empresta as duas vagas na entrada da calçada para a carrocinha do podrão.

Fantasiava as palavras rabiscadas se entrelaçando, perdendo as formas e tornando-se grandes montes de lama azul escorrendo pelo papel e respingando em suas roupas. Martelava o dedo na poça quimérica sobre o caderno e fingia sentir gotas quentes salpicando seu rosto inanimado e iluminado por uma luz amarela do abajur sem proteção que o fazia suar por conta do calor da lâmpada apontada para a sua cara.

Levantou-se de hora pra outra, esquecendo as alucinações propositais e abriu a janela pra tentar se refrescar um pouco. Ficou admirado com a neblina que sitiava o apartamento, soltando um hálito frio pra dentro do quarto e devorando com uma língua branca a iluminação dos postes, os carros estacionados e já mastigava tudo que estava pra além das esquinas da avenida onde morava. Percebeu a temperatura baixa e se agasalhou com uma jaqueta rasgada. Continuou olhando a neblina. Não via muito, mas seguiu olhando. A neblina fazia bem. A neblina engolia sua melancolia.

Achava-se grandinho demais para cultivar sonhos brandos e tinha fixo na mente que, mesmo sendo tudo aquilo uma grande falsa que não o levaria a lugar algum, era de uma beleza poética. A falsidade o fazia bem. Ou melhor, lhe fazia bem imaginar que a falsidade lhe fazia bem. Achava reconfortante saber que a falsidade lhe era, das sensações, a mais sincera. Voltou a se sentar e a se distrair com o balido das perspectivas.

“Béééé”.

Jader Pires