A madrugada
Pega a cena. O presidente da Câmara sorrindo, boca larga, aquela morosidade de sempre nos movimentos, enquanto o televisivo dominical exibe seus luxos, viagens a hotéis sete estrelas, visitas constantes a restaurantes de todas as notas, cifras e mais cifras. De ceroulas e com a luz apagada, ele assiste a tudo no escuro da sala, os óculos refletindo os pratos de milhares de dinheiros no brilho da televisão e ri, não à toa, mas sabendo que ele deu a volta em todo mundo a vida toda e, agora, é só mais uma noite em claro.
Ele e ela também não dormirão. A madrugada avança e eles continuam procurando telefones, cada um na sua casa, para destruir. O juiz já foi para casa e goza há horas de sua própria companhia. Prova ternos em frente ao espelho grande, enorme, dá mais um gole no copo e ajeita outro nó de gravata. Treina sua pose hercúlea e corre pro closed atrás de outra cor de camisa que combine melhor. Ele sonha com o dia que vai ser a vez dele.
Não só esse, mas muitos esperam sua vez. O que adora mandar a polícia sentar o cacete viajou para alguma cidade distante da capital pra poder, né, deixar a gentalha pra lá. Mas deixou ordens expressas pra polícia nenhuma bater. Não nesses, né. O vice lê em voz alta, no seu latim fluente, o próximo queixume que pretende tornar público. Se estamos numa merda de democracia, caralho, ele há de poder expressar seus desgostos. O segundo, não vice, o segundo mesmo, esse bate freneticamente o cartão de crédito contra o espelhinho. Mas ele nunca vai atrás, só manda alguém buscar. Esse não dorme tão cedo.
Hoje mais cedo um garoto apanhou por atravessar a avenida vestindo vermelho. Levou chutes, socos e pontapés. Um homem cuspiu na cara dele. Em casa, banho tomado, curativos feitos, deram-lhe um relaxante e fecharam a porta do quarto pra ver se ele descansa. No escuro, ele mantém o olho aberto.
Uma e quatro da manhã e eu sentei pra escrever este texto. Sono nenhum. Acho que hoje, ninguém aqui citado dorme.