O corvo

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O corvo parou pra dar uma olhada na minha vida esses dias. Vai que, talvez, num momento de distração ele encontrasse algum naco de coisa boa para bicar. Pousou na janela, encaixou as patas magrelas no vão do entorno de alumínio e me olhou cá sentado no canto da sala escrevendo como estou fazendo agora.

Na tevê, meu time sofria para empatar com um time péssimo no último minuto, dias depois de a seleção (que nem minha simpatia tem há tempos, mas o corvo não sabe disso, deve ter achado que morro de amores como se fazia lá nos 70 ou meio dos 90) fazer a mesma coisa com time ruim. “Pobre homem”, pensou o pássaro, isso sem saber que estimo o campeonato inglês que tá uma draga (thanks, United) e que o The New York Knicks já está de férias forçadas, matematicamente eliminado em mais uma temporada da NBA.

Não são bons dias nos meus esportes.

A pequena ave deu então uns passinhos para o lado e se jogou num voejo curto até o encosto do sofá, sentindo certa segurança pela falta de movimentos enérgicos pela casa. Meu cão dormia colado nas costas da pequena que há muito já se entregara ao sono. Éramos apenas o preto e eu. De cima da almofada, já melhor assentado, viu as abas acumuladas em meu browser e, um a um, foi acompanhando comigo os desdobramentos da política nacional e suas asas iam dando umas chacoalhadas a cada calhordagem que percebia nas notas, os conchavos e acordos, os cenários possíveis. Deu-lhe um cansaço tentar colocar olhos lúcidos nessa tramoia jocosa que atinge legislativo, executivo e judiciário.

Mais ainda, consegui pescar dando uma olhadela para trás, não muito direta para não assustá-lo, a estafa e desgosto pelo qual o nosso companheiro de penas foi acometido quando abri minhas redes sociais para que ele pudesse ver todo o ódio, medo, frustração e desespero disseminados feito doce em dia de Cosme e Damião (ele provavelmente desmaiaria se soubesse que falar de crendice pagã nos dias de hoje pode render xingamentos, ofensas, socos e pontapés, talvez até um incêndiozinho na porta de casa se for em local mais afastado que pouca gente de fato liga).

Eu precisava abrir o jogo. Me virei e acenei pro corvo. Ele, já meio atordoado, cumprimentou de volta sem susto. “Corvo, cê acredita que, hoje, uma médica não atendeu uma criança no hospital porque o pai tinha uma convicção que não era a dela? Que ele estivesse errado, penoso, olha a trabalheira que a gente dá por ser mimado e não querer conviver com quem faz de outro jeito”. O bicho veio atrás de carniça e achou muita. Mas parecia demais para ele. Quando eu lhe mostrei a foto do pato inflável com olhos em xis, ele grasnou e se debateu todo, dando bicadas na barriga e costas como se quisesse se desgrudar de toda e qualquer coisa que teve contato nos últimos minutos. “Ah, cara, que nojo”, ele disse.

Virou-se para a janela e foi embora sem comer.

Jader Pires