A noite escura

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Olhava para o alto e via o nada. Ficou divagando alguns minutos sobre a teoria de conseguir ver todo o seu quarto, mesmo no escuro. A ausência de luz não o impedia de ver a cômoda, a escrivaninha e até as contas acumuladas em cima dela (na ordem de importância, uma em cima da outra). Os braços, logo abaixo cabeça servindo de apoio, começaram a ficar dormentes e ele decidiu levantar-se para fumar. Acendeu a luz e vislumbrou cada objeto que estava a imaginar quando a luz estava apagada e soltou um leve sorriso de satisfação que logo se desfez com o pensamento de que a ideia de ficar contente com uma teoria tão dispensável era desespero demais.

Sentou-se na ponta da cama e olhou para os pés fincados no chão e a geometria que fazia o vão entre eles. Pegou o maço que estava na cômoda e acendeu um cigarro. A fumaça era densa e fazia questão e ir diretamente na direção de seus olhos já avermelhados de cansaço. Mas o sono, que era a sensação de maior desejo, não se via em lugar algum.

Havia dias que não conseguia dormir, atabalhoado de precipitações efêmeras, mas que se alternavam com ivejável disciplina em sua mente. Sabia que algo lhe faltava, mas não sabia o que, ou sabia e ficava a negar a verdade plena bem diante de seus olhos caídos em estafa. Sua falta de entusiasmo fizeram com que as confusões da vida passassem sem maiores arroubos. Um calo se formara em seu coração.

Resolveu que ia se levantar e se levantou mesmo, vestindo as calças que estavam penduradas na alça do armário já com um cinto estrategicamente passado ao redor da cintura (na verdade não se trata de estratégia, mas sim de preguiça de tirar o cinto da calça) e conferindo as poucas moedas que foram esquecidas no bolso. Não trocou a camiseta que estava vestindo no momento da vontade frustrada de dormir e esboçou uma tentativa de arrumar com as mãos o cabelo fino e embaraçado. Abriu a porta do apartamento e ficou olhando o corredor escuro por alguns segundos, apontando com os olhos o vaso de plantas que ficava entre os elevadores, de serviço à esquerda e social à direita. Indicou empurrando o ar com o nariz a porta do vizinho da frente, dos dois à direita, mirou a janelinha no alto à esquerda (mas essa era fácil porque estava iluminada pela luz da rua) e parou pra pensar se deveria sair mesmo. Botou na cabeça que tinha de comprar mais cigarros e trancou a porta do apartamento com uma mão enquanto acendia a luz do corredor com a outra.

Ao chegar na rua, sentiu o sereno pousar em seus cabelos já desarrumados com o vento bem gelado. Enfiou as mãos no bolso e lamentou o fato de não ter pegado uma blusa. Andou duas quadras e atravessou para entrar na avenida que certamente haveria de ter uma padaria aberta. Ao cruzar a rua, parou para observar as gotas que caiam tranquilas e brilhantes quando atravessavam em frente à lâmpada do poste. Essas gotas eram como verdades inundando toda sua trajetória de dúvidas e desencontros com a razão. Imaginou, naquele momento, que como não amava a si mesmo, por consequência não amava a ninguém. Não tinha amor pela pessoa que era e muito menos tinha a perspectiva de amar a pessoa que poderia ser.

Após a breve epifania, seus olhos já não estavam mais cansados. Estavam arregalados de contentamento e focados no próximo passo a ser tomado. Ele se virou calmamente, ainda com as mãos no bolso, e adentrou na pista molhada da avenida. Seus olhos não viram mais nada. Foram os ouvidos que trabalharam para identificar o barulho de uma buzina que crescia alertando a chegada do inevitável. Deslumbrou-se com o silêncio que precedeu a chegada da santa. Abriu os braços em busca de redenção e foi acalentado pelo beijo da imaculada. Seus olhos se encheram de lágrimas com o gesto singelo e sincero da agônica persona.

Um beijo de despedida em quem nunca se apaixonou.

Jader Pires