O atolado

004.jpg

Sabia dizer que era algum lugar entre Garganta e Graças a Deus, na Bahia. Rodava sentido Ilhéus quando o caminhão parou no atoleiro e não saía nem com reza brava. Rolou no barro, ralou na lama, sacolejou a boleia e nada de o caminhão andar. Só sujeira acumulada e tempo desperdiçado. Teria que esperar.

Na cabine, deu uma olhadela nuns papeis que havia no porta-luvas, ligou e desligou o rádio, tentou bater uma punheta pra abafar o tédio, mas estava sem ideias eróticas. Seu pau caía pelas tabelas e ainda não era nem meio-dia. O sol aborrecia, os pelos grossos no peito dele amontoavam-se com o calor, fabricavam ligas de suor, uma engenharia que empapava a frente de sua camisa bege de mangas curtas. Abriu um botão e depois dois. Sem a camisa, tornou a descer do caminhão. Olhava de um lado, praguejava de outro, chutava os calços que tentava fazer com pedras e tocos e, com as mãos na cara, rogava para os céus e pedia à santa mãe a remissão de quaisquer pecados que poderiam te-lo colocado naquela moléstia. “Ô, provaçãozinha dos infernos”, proferia com a boca toda enrugada e chacoalhando o punho fechado na direção do argiláceo.

De cócoras na traseira do Mercedes-Benz, um LP 321 1973 todo laranja, fitava uma poça qualquer. Em vez de o reflexo do céu, enxergava apenas a Cidade Nova toda iluminada na noite quente, aquele bafo bom vindo do mar e o jogo do seu Sport passando na televisão do porto. Queria só chegar a tempo de ver a peleja da Ilha do Retiro. Se bem que, do jeito que tava ruim pro lado dele, era até bem melhor ver jogo nenhum pra não respingar seu caiporismo momentâneo no coitado do Sport Club do Recife e ainda fechar o dia desastroso devendo caixa de cerveja pra algum segurança lá do cais.

Imagine só a lambança maior que a dessa jeringonça atolada no meio do nada, já devia uns três fardos pro Clodoaldo lá em Salvador, aquele branco safado que gostava de machucar puta de beira de calçada e não tinha nenhum filho de uma mãe pra dar de frente com ele e dizer que ia fazer com a mãe o que ele fazia de maldade com as meninas. E que que foi se meter com aquele sicário pistoleiro de merda que conhece a polícia todinha e fica de bar em bar somando dinheiro da sinuca, conferindo as fés do jogo do bicho e dando sopapo em mulher.

E Gracinha, sua esposa, que soubesse dessas intimidades do seu homem com esse tipo de sujeito, ai dele se ela descobrisse que as férias chegavam diminuídas por conta de jogo, deus o livre de passar pela cabeça dela que ele gastava com birita e rameira. Ela já estava com a macaca porque ele não havia consertado o varal e viajou de novo. A mulher trabalhava de vender boneca de pano na feira e não tinha tempo pra ser dona de casa sozinha não. Tinha duas crianças pra cuidar e ele que ficava com a responsabilidade de manter a casa em dia, os móveis ajeitados, a pintura um brinco, a garagem varrida e o varal sempre em ordem. O filho e a filha, logo o casal todo, estavam também doidos da cara com o pai que lhes prometeu doce de banana na lata e não levou.

“Diabo”, pensou coçando a cabeça e com os lábios dentro dos dentes, como se chupasse a boca toda pra dentro. Tava ruim com todo mundo. Vai ver tava tudo certo ele estar naquele aperto. Do mato da beira da estradinha saiu um matuto. Deu a volta no caminhão, observou o trabalho paliativo do caminhoneiro, leu a placa e soltou: “tá triste, pernambucano?”. Ainda agachado, apontando com as duas mãos pro atoleiro, o motorista devolveu: “mas ué, não tá vendo não?”. O jeca riu um riso sem dente. “Mas tenha calma, homem. É bom quando tá tudo ruim que aí só tem o que melhorar”. Tirou seu chapéu em saudação e seguiu pro outro lado, adentrando no mato de novo.

Realmente, agora só tinha que dar certo.

Jader Pires