O bêbado

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“Mas que ideia magnífica essa minha!”. Foi para debaixo do palco e caiu no sono.

No meio dos festejos de carnaval, com aquele monte de luzes, sons e gente, o lado de baixo do coreto oferecia paz. Escuro e com oito aberturas para ventilação, era um arredondado quentinho e com pouca umidade. Praticamente uma suíte presidencial para quem estava há mais de vinte e quatro horas sem banho, com uma fantasia de presidiário toda rasgada e suja, além de um tipo de capacete com cabeça de sapo improvisado na cabeça. Embaixo do estrado, sentia os poros soltando o resto da cachaça que o corpo não deu conta de segurar, um suor grosso que colava na roupa e na barba, fazia o olho arder e as narinas tremiam incomodadas com aquela papa etílica, um bodum de pinga que aumentava conforme o sol ardido da manhã ia pegando força.

Mesmo assim, dormiu.

A garganta encheu e o corpo reagiu com engasgos. Cuspiu em gargarejo o bolçado de álcool e restos de pão de cachorro-quente. A mania de dormir de barriga para cima lhe imputava o perigo de, qualquer dia, não acordar nunca mais. O caminho todo entre estômago e boca estava preenchido. Ao se virar de lado, sentiu o jorro encorpado ser expelido pelos espasmos abdominais. Ele mesmo não fazia nada, só seu corpo que reagia pela simples condição da sobrevivência acima de tudo. Agradeceu o instinto e limpou a boca com as costas da mão. Não podia mais usufruir da hospitalidade da parte interna do palquinho. Não por conta do vômito, claro que não, aquilo foi, até pouco tempo atrás, parte dele. O que não se podia mais era arriscar apagar com a pança para o alto e ter o susto transformado em óbito. Ainda tinha muito carnaval para pular.

Sabia que tinha que sair de lá. Sabia também qual era a única solução viável para aquele problema. Não era a primeira vez e tinha o remédio certo para dormir tranquilo mais algumas horas. Lá fora já beirava oito da manhã e o amarelo picante lhe fazia arder olhos e alma. Mas era preciso enfrentá-lo e deitar no banco da praça. Lá, seria obrigado a ficar de ladinho em posição fetal, acomodado perfeitamente em prol do que ainda haveria de sair. Vomitaria sem morrer e ainda por cima tudo o que saísse de sua boca, baba ou gorfo, tudo iria direto para o chão, evitando assim a proximidade com o olfato. No jardim central, seu melhor amigo já estava com o sono avançado em outro banco. Usava uma máscara de luta livre verde e dourada que não impedia o cachorro de lhe lamber a boca. O fazia numa repetição intensa enquanto outros dois cães, um casal, trepavam loucamente nem dois metros dali. Ele não sabia afirmar se era a bebedeira ou um ensaio muito bem feito, mas os três se movimentavam na mesma velocidade, o vira-latas que metia, a cadela que levava ferro e o marronzinho que lambia a boca do amigo. “Que espertos”, pensou com apenas um olho aberto.

Caminhou noutro banco e deitou-se. Respirou fundo, dobrou os joelhos, deixou os olhos fechados se acostumarem com a luminosidade. O cheiro de pinga que saia dele aumentou com o contato direto do sol. Parecia ficar mais bêbado a cada inspirada longa. Abriu os olhos uma última vez e lá estavam os quatro. O amigo com a boca lambida, o marronzinho lambendo a própria caceta e o casal pós-foda, grudado de costas um para o outro. Ficou levemente preocupado de ser o próximo a ter os lábios lambidos.

Mesmo assim, dormiu.

Jader Pires