O dente no podrão

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Um cachorro-quente, daqueles estufados de tanta coisa. Ali em Botafogo, uns dez minutos da Federal do Rio, por cincão você come, na carrocinha do seu Oswaldo, o "especial". É o famoso podrão, um sanduíche incrementado pra atrair a freguesia cheia da fome, sabe. Nessa brincadeira, pra bater a concorrência e seguir no ramo bem na fita com a clientela, tá ligado, o mais é sempre mais mesmo.

Vale de um tudo. Além do tradicional pão de cachorro-quente, salsicha e molhos condimentados, o trio de catchup, mostarda e maionese, o recheio vai contando com uma variada farra de ingredientes fartos e de sabores não condizentes. A ideia, nesse recreio de meu deus, é ter diversas refeições num lanche só. Disso, se bota batata-palha, grãos sortidos como ervilha, milho e azeitona, até carne moída, frango desfiado, queijo parmesão ralado, cheddar derretido, molhos à vera, de tomate enlatado e de alho, molho inglês e azeite, pimentão, repolho, ovo de codorna que é pra dar sorte e há quem diga que já comeu podrão na madrugada com amendoim também. Só não tem purê de batatas e catupiry. “Essas coisa é tudo moda de paulista”, fala o seu Oswaldo enquanto coloca mais um podrão pra ser prensado entre duas chapas pra segurar a bronca toda.

E daí lá foi ele, o Cleber, voltando da faculdade para casa quando bateu um siricutico no estômago, aquela coceira gostosa do apetite, a fome lascada. Pediu um especial pro seu Oswaldo e esperou encostado na mureta do consultório dentista que, mesmo sem permissão, empresta as duas vagas na entrada da calçada para a carrocinha do podrão.

Pão amassado e quentinho nas mãos. Dentro, vermelhos e amarelos, verdes e marrons, tudo junto e apetitoso, aquele cheiro de coisa errada e coentro, cebolinha e salsão. Pois é.

Deu uma primeira mordidela pra, né, fazer reconhecimento do terreno, atestar se tá firme a infraestrutura do sanduba pra depois descer uma bocada e outra dela. Glândulas salivares trabalhando, o conjunto de componentes alimentícios de procedência duvidosa sendo triturado e, já em pasta, engolido. Até que veio o estalo doído. Mordeu algo duro, um fragmento rígido, uma porção maciça que deu o imediato incômodo.

Afastou comida para um lado com a língua e separou a parcela resistente. Um dente.

“Puta que pariu”, pensou o Cleber quando, entre os dedos recém tirados da boca, encontrou um dente. Seus músculos travaram com o horror. Parado e empalidecido, não tinha coragem de conferir se tinha lhe caído algum molar no fundo da arcada dentária. Sua dúvida, a perplexidade em seu pensamento era a de não saber, e não querer saber, se aquela estrutura esbranquiçada envolta de esmalte e hot dog era, de fato sua, uma tragédia pessoal, ou se poderia tratar-se, dado ao comércio que nunca viu uma vigilância sanitária, do dente de outra pessoa.

Já não sabia mais se continuava comendo, se jogava a iguaria preparada com tanto esmero pelo seu Oswaldo, que era fera demais pra vacilar assim, se pagava a conta, se pedia um refrigerante. Seria dele o dente ou de outra pessoa? Ele perdeu o dente ou era de outra pessoa? Dele ou de outro? Dele? De alguém? O dente dele caiu ou ele estava mastigando o de um desconhecido?

De quem era aquele dente?

Jader Pires