O padrinho
Da água já havia desistido, mas não de sua tarefa. Depois de oito dias na caminhança, as sandalias já em total desgaste, as roupas puídas em tom pastel, a garganta irritada, parecendo duas folhas de papel lambidas e coladas uma na outra. Só que chegou, enfim, ao santuário onde fica o padrinho, onde o santo haveria de lhe ajudar com a angústia que lhe tomava o estômago desde que saiu de casa.
O problema não era fome, era a seca também não, tinha a vida boa e bons ventos lhe soprando sorte. O que precisava era mesmo tirar uma incerteza da cabeça, matar uma cisma. Queria poder seguir em paz. Com isso, botou seus papeis na bolsa de carregar e partiu. Peregrinou os oito dias encontrando pessoas no caminho, trocando auxílios, partilhando esperanças, comutando certezas.
A troca.
Chegando na terra predestinada, encostou na estátua do antigo padre, hoje santo, aquele que puxa desespero e alegria, procissão e romaria, opera milagres. Precisava ter com o velho Ciço. A madrugada há muito havia engolido a claridade do sol e nessa hora só ele e o consagrado ocupavam aquele espaço. Respirou, puxou saliva que nem mais tinha pra ver se conseguia liberar qualquer sopro da voz. Ajoelhado, o líquido fluiu foi dos olhos embotados de terra seca da estrada. Chorou não lamento, mas agradecimento. Só de ter os olhos do padrinho sobre seus atos, se sentia nutrido. Restava a indecisão.
“Padrim, as folhas eu tenho, as palavras também não vão me faltar. Peguei algumas lá de casa, o povo que vem te ver me deu mais um monte. Tô com o coração que nao cabe mais frase de afeto e vivência. Mas me falta saber como fazer, padrinho. Me ajuda”. E não escutou som algum, mas é como se o padroeiro conversasse com ele pelo avesso, lá de dentro pra que ouvisse fora dos ouvidos. “Senta aqui na calçada, meu filho, e escreva. Eles virão”. Daquela noite em diante, todos os dias ele podia ser visto no meio-fio ao lado da imagem do beato. Sempre olhando. Sempre escrevendo.
E eles vieram. Aos montes.