Truco!

039.jpg

Duas coisas ainda me são bem fortes na cabeça: Uma delas era a candeia, que iluminava oscilante e manchava a mesa com seu tom dourado. Era um amarelo forte enobrecendo o samba tocado pelos bambas das redondezas. A outra era a movimentação singela e poética da fumaça. O frio não atrapalhava a alegria, mas deixava a fumaça mais densa e, assim, a danada passeava com pompas pelo ar gelado, por entre as pessoas que iam e vinham deformando massas esbranquiçadas que bailavam elegantemente, ignorando tais transeuntes.

E essa era a mistura de cores daquela festa. A cerveja, dourada e protegida por uma fina capa branca de espuma passeava livremente, sedutora e cheia do dom de acalentar os corações mais ansiosos. É, o amor se manifesta das mais diversas formas e, naquelas mesas, tinha pra se dar e amor pra se vender. Amor pela gelada que deveria sempre completar a metade vazia do copo, o amor pela dançarina de vestido bordado de flor, amor pela música feita pelos que ainda haveriam de ser a velha guarda e amor pelo estilo de vida, pela maneira de se levá-la devagarzinho como ainda mandava a cartilha do malandro.

Mentira. Não havia cartilha. Não havia regras e, se olhasse bem, não havia nem malandro porque “malandro, que é malandro, não se apresenta”. Mas que o reduto era dos madraços, ah, isso era. E que mal havia nisso? Todo mundo ali, aproveitando uma noite com a cabeça tranquila, sabendo de cor e salteado que a vida bate, e bate sim, mas que ela também assopra. E assim se leva.

A cachaça e o ânimo já esquentavam a mesa quando se trocaram as duplas e começaram mais uma rodada de truco. O jogo que tinha apelido por ai de “jogo de ladrão”, numa época em que o violão era também coisa de vagabundo. E claro que tudo isso fazia risada na rodinha porque, diziam eles, “é até bom que se vê como jogo de gatuno, viu, assim só vem jogar quem tem as manhas memo. Eu é que não preciso de mané pra parceiro, né não”. No truco é onde o malandro exercita seu dom, é onde se deposita toda a prática do estudo do cotidiano. “No truco não tem blefe, tem malandragem, rapá”.

O dourado ganha intensidades bem interessantes quando cai em cheio no rosto infalível do “pé”, aquele que dá as cartas e confere destemido sua obra. Carta vai e carta vem, os olhos conferem com todos os escudos as táticas acertadas e os movimentos calculados erroneamente. A fumaça também passa despercebida pelas narinas aguçadas atrás da hesitação, da manilha escondida. O momento descontraído disfarça atenção máxima nuances. Sutilezas.

Mas é truco e, no truco, nada é feito seriamente. “Se fecha a fuça, amigo, aí tem”. Então o truco é jogado na atenção e na malemolência. E do gingado que surge a gritaria. Todo malandro sabe as regras e todo malandro sabe como quebrá-las.

— Truco!

— Cai dentro, marreco!

E os sons se misturam numa discussão infinita e com ares de ser algo pesado, mas tudo faz parte do ritual de se coletar mais e mais pontos. Em meio aos argumentos surgem risadas indescritíveis provando a tranquilidade daquela balburdia. Mais uma rodada emocionante. “Como que foi a rodada, meu chapa? E acha mesmo que isso importa? Ganhar no truco é ganhar no grito, mermão! Aprende a gritar que o tento vem!”

E com essa resposta, mais uma vez a malandragem se vestiu de branco e dourado e saiu por aí, dona de si.

Jader Pires