A gente mede amor com cada besteira, viu | Do Amor #114
Acordou e deixou-a dormindo. Final de semana, deixou que ela fizesse seu programa preferido: rolar preguiçosa até depois de meio-dia mais enquanto ele, ativo, foi fazer as coisas que julgava serem típicas dos que acordam cedo, saiu para correr, voltou tomando água de côco, tomou um banho demorado, sentou-se para ler o jornal, colocou aquele disco do Gil que combinava com o solzinho já quase todo no alto.
Resolveu fazer o café da manhã dela. Sucão, um lanchão grandão (ela coloca todo o seu tesão na arte de comer bastante enquanto ele se organiza bem para ter uma alimentação balanceada) e cozinhou um ovo também. Na porta do quarto, levando tudo em cima de uma bandeja com organização impecável, lembrou-se do pior: deixou o ovo cozinhar só por quatro minutos, o jeito que ele gosta de deixar a gema mas mole, enquanto ela só comia gemas duras, secas, um fato que ele achava abominante para seu paladar, mas que não fazia sentido insistir para que ela achasse outra maneira de comer ovo cozinho, também gostoso. Virou-se novamente para o corredor e retornou à cozinha. Lá, enquanto comia a gema mole do agora seu ovo e fazia um novo para a namorada, foi deixando sua mente se exercitar num assunto meio perigoso, as coisas que ele gostava de um jeito totalmente diferente dela.
Pensou em como adorava praia, mas pra ficar só umas horinhas, e ela amava fritar debaixo do sol até ele virar lua. Ele tirava os sapatos quando chegava em casa e ela, não. Ele ligava pra família dele toda semana, ela ficava meses sem dar notícias. Ela toma banho com a água pelando e ele gosta mais morninha. Ela abre a cortina pra ver filmes e ele prefere o escuro. Cachorro, gato, verde, vermelho, listras, xadrez, Messi, Cristiano… Ele não suportava trepar de meia, ela adorava que ele as vestisse.
Sua boca ficou sequinha de tudo, os braços amoleceram, tentou se arrumar na cadeira mas parecia que estava paralisado. Tudo do avesso, tão diferentes, como podiam, eles, dois, ter se encaixado por esse tempo todo? Nem da Tropicália ela gostava, nem de conchinha eles dormiam. Como poderia um casal sobreviver às mazelas do dia a dia se nem agarradinhos eles conseguiam pegar no sono?
Ela acordou com uma fome do capeta, de engolir umas guloseimas e dele também. Estava nos dias em que o fogo sobe logo cedo, mal abriu os olhos e já queria abrir outras coisas. Tateou a cama e não o encontrou. Imaginou ele aparecendo só de meias e uma espécie de piripaque a acometeu, um faniquito de morder um sanduíche ainda pelada logo depois de dar para ele. Chamou-o pelo nome e nada. Reclamou feito uma gatinha manhosa e nada. Levantou-se, olhou em volta, o quarto, a roupa dela do avesso, jogada no chão, as dele pacientemente dobradas em cima da cadeira na escrivaninha. Zanzou atrás dele pela casa silenciosa, nada no banheiro nem no corredor, a sala vazia, nada na cozinha. Coçou a cabeça, pensou se poderia pegar seu brinquedo até que o namorado aparecesse (“ele deve tá correndo ainda”), mas reparou na folha dobrada em cima da mesa. Um bilhete. Dele. Tava dando adeus. “Repara só”, leu lá pro meio, “a gente não dá certo em nada! Como a gente vai saber quem ama quem aqui? É melhor cada um seguir seu caminho”.
Sem entender muita coisa, mas com uma vontade danada, foi atrás do brinquedo pra matar primeiro o seu primeiro problema. Depois veria que macacos morderam aquele cara, porque será que ele achou que a consistência da gema definiria o quanto de sentimento eles tinham um pelo outro.
A gente mede amor com cada besteira, viu.