‘Eu queria que minha mãe se apaixonasse de novo’ | Do Amor #112
Depois que meu pai tinha largado dela, houve um período de negação do cotidiano. Minha mãe ficou semanas na cama, não queria mais sair de casa, comia pouco, tomava menos banhos. Depois de notadamente perder algum peso, precisei intervir com mais afinco e a levamos aos médicos. Nunca mais eu vi meu velho de novo. E nem ela.
Depois de retomar parte de sua vida, ao menos a metade vital para sobrevivência, retornou para o trabalho, recuperou o brio físico, a sanidade, mas ainda me deixava incomodado o seu completo descaso para uma vida social. Não marcava coisas com amigos, não tinha ímpetos de viajar nas férias. Vivia do escritório para casa e da casa para o escritório, vez ou outra visitando a minha avó para um almoço. Assistia séries na televisão, lia bastante, chegou a encher de rascunhos um caderninho de poesia. Mas eu sentia falta de vê-la sorrindo mais, contando piadas para outras pessoas, discutindo esses escritos com alguém que confiasse, que pudesse dividir com ela os prazeres artísticos. E outros, por que não? Minha mãe merecia trocar afagos novamente, não?
Mas o tempo passou, um ano e dois, meia dúzia. E ela dentro de seu casulo profissional exemplar e mãe acolhedora. Talvez fosse essa a sua sina e, batalhadora que sempre foi, bateu de frente com tal incumbência e foi ser quem ela “deveria ser”. Até seu estômago começar a reclamar. Primeiro uma azia, alguns refluxos depois e, na sequência, dias inteiros de pontadas incômodas. Cortou o café por uns dias, experimentou amanhecer com um daqueles protetores estomacais em cápsulas. E nada. Foi ao gastroenterologia se consultar. Voltou com uma bateria de exames, disse que poderia ser só uma somatização de algum stress ou poderia ser uma úlcera que começara a dar as caras. Faria bem entender melhor. Fez lá endoscopia, ultrassom, monitoramentos com cateter, fotografaram e investigaram partes do duodeno, ducto biliar e pancreático, esôfago, língua e estômago. E, a cada resultado, ela marcava um retorno no doutor. Foi uma vez nele, e duas, três. A cada volta, tinha outro retorno marcado. A cada dúvida, uma ligação, mensagem e tornava a se consultar com ele. Eu chegava em casa e ela não estava lá. Mais um pouco e poderia, ela mesma, se analisar, devida a expertise que foi adquirindo a cada passada.
Chegava em casa quieta, não dizia muita coisa, comentava que estavam avaliando sua situação, entendendo o caso todo. Tentou, sem sucesso, me tranquilizar dizendo que não haveria de ser algo sério, que tudo se resolveria, mas seu afastamento, àquela altura, me deixou inquieto. Será que todo o processo de luto de uma relação que morreu de forma abrupta poderia ter trazido para ela algo crônico, permanente, fatal? Me convidei, certa tarde para acompanhá-la. Pedi dispensa do trabalho e tudo, mas ela fez de um tudo para que eu ficasse em casa e a esperasse. Preferia ter informações sozinha, optou por me proteger e ser, mais uma vez, forte para enfrentar o que precisasse enfrentar. Me conformei por hora e a deixei partir. Mas as semanas seguintes foram de sofreguidão. Como eu poderia viver uma vida tranquila com minha mãezinha vendo a dela definhar diante dos olhos. Sozinha. Afastada.
Bisbilhotei sua agenda e vi quando seria a próxima consulta. Faltei novamente no serviço e fui direto para o endereço da clínica, entrei na sala de espera e peguei um semanário. Até que ela saiu do consultório já vazio, ela a última paciente do dia. Pedi licença para falar com o doutor e estranhei a cara que eles fizeram quando me viram. Estavam saindo sorridentes e, do absoluto nada, parecia que ambos estavam seguindo para dentro da sala comigo acompanhando um cortejo. E era. Eu tinha acabado de matar a vibe dos dois, que estavam se pegando há semanas no fim dos dias de trabalho deles. Provavelmente estavam engalfinhados no consultório enquanto eu os aguardava na sala de espera. Amor à segunda vista, eles disseram, porque só se beijaram pela primeira vez na segunda ida dela, uma paixão fulminante e correspondida, que precisava ser mantida em segredo pela ética do trabalho, mas que preferiram seguir se vendo perigosamente porque de alguma maneira aquilo era bem bom para os dois.
O amor me deu um susto do caralho.
Que bom.