Dessa mania que a gente tem de voltar pra pessoa amada | Do Amor #101
Chegou a jurar com os dois pés juntos. Depois da última briga, disse que não voltaria para ela nunca mais. Era uma quase questão de honra. Vivia desabafando com os amigos que precisava de espaço, que necessitava conhecer gente nova, que ainda era novo demais para se prender a um relacionamento que claramente, nas palavras dele, já tinha chegado em seu ápice e que, segundo ele, seria só derrocada dali para frente. Numa noite de carência pueril, pegou suas coisas e saiu de casa.
Levou umas roupas na mochila, carregou uma caixa com fotos, uns cadernos de anotação, a caixa de som pela qual ele era apaixonado e carregou consigo também seus livros, mas, para manter a ironia da coisa, largou lá esquecido o Neruda que ela tomou dele e nunca leu, feito a canção do Chico que, pela coincidência, ela de propósito evitou folhear o livro para que se mantivessem eternamente como na canção. “Só nunca parou pra pensar, ela, que a porra da música fala de uma porra de término”, ruminava ele em voz baixa enquanto olhava sua cara com duas olheiras desproporcionalmente grandes no espelho do elevador. Dizia ele que ela vivia no mundo da lua, que era sonhadora e desligada, que não pensava muito nele, que era toda para amigos e família e os cachorros que se doía quando os via abandonados na rua. Teve uma vez que ele ficou furioso por ter de conviver com dois vira-latas por oito semanas em casa até ela encontrar que pudesse adotá-los.
Atravessou o portão do prédio se sentindo mais leve. Agora poderia pensar na própria vida, planejar por um, não mais haveria de equilibrar anseios para a simples tarefa de agir. Era só pensar em algo, escolher alguma coisa, decidir por uma preferência. E ir. Respirava aliviado, parecia que seus pés mal tocavam a calçada. Decidiu que ia começar um curso de mergulho. Que, finalmente, tiraria do papel a vontade antiga de fazer finais de semana de experimentações com comida para os amigos e, quem sabe, gradativamente mudar de carreira para entrar no mundo da gastronomia. Todos falavam o quão bem ele cozinhava e ela mesma era sua fã número um nesse quesito, chegando a insistir que ele investisse nesse talento. Só que, para ele, o que seria um incentivo por parte dela, por falar na frente dos outros em momentos que ele considerava impróprio, se tornava um peso, um pequeno tiro pela culatra que o deixava amedrontado, e não inspirado.
Jogou as coisas no carro decidido a virar tudo para o avesso. Iniciaria uma nova e fresca etapa. Tudo do zero. Só precisava subir e pegar a última leva de pertences: sua coberta favorita, suas facas e um conjunto de roupa social que mantinha dentro da capa de plástico porque usava pouco, mas era bem cara e salvava a pele dele nas necessidades de se vestir mais formalmente, em uma meia dúzia de eventos durante o ano. Pediu para o cara do Uber esperar e subiu.
De volta no elevador, via no reflexo sua figura confiante. Nem mais as bolsas escuras debaixo dos olhos enxergava mais, só o homem certo do que estava fazendo, exultante para viver suas novas experiências. Abriu a porta do apartamento cantarolando e deu de cara com ela. No momento em que descia, ela estacionava o carro do casal na garagem do subsolo. Ele desceu pelo elevador chamado social e ela, para chegar mais rápido em casa, subiu pelo de serviço, mesmo achando um absurdo o fato de existir tal separação para que pessoas possam se locomover para cima ou para baixo em um edifício. Os dois, no silêncio, na penumbra, de frente um para o outro. Ela tinha saído com umas amigas depois do trabalho e tinha avisado ele que chegaria a tempo de verem juntos o reality show de drag queens que eles estavam viciados e encontrou a casa mezzo arrumada mezzo furtada. Entendeu tudo quando ele, tropeçando nas palavras, lhe explicou que queria terminar, que não ia mais se sujeitar àquela vida. Ela sorriu, sentou-se no sofá enquanto ele explicava suas dores, suas mágoas. Só serviu de ouvinte enquanto o homem em sua frente colocava para fora o que estava lhe acometendo. E foi saindo e foi saindo e ele foi aumentando a voz e a velocidade nas confissões que fazia. Foi esvaziando-se. Até acabar.
Lá embaixo o cara do Uber avistou o homem que encomendara a corrida há pouco voltando de mãos vazias. Mãos, essas, que se apoiaram no vão da porta onde o vidro se abaixou e, com um sorriso nos lábios, ele pediu desculpas e disse que ia tirar de volta as coisas que tinha estocado no banco de trás. Deu uma nota de cinquenta pro motorista, por fora mesmo, pelo transtorno e pediu ajuda para pegar seus bens. Estava voltando para casa. Parecia leve, como se seus pés mal tivessem tocado a calçada. Ele comentou, enquanto empilhava de novo os livros no braço, que estava voltando para casa, que iria tentar mais uma vez. Desabafou com o condutor que sua esposa era uma pessoa muito legal, inteligente e criativa, uma companhia que não se abandona assim por qualquer coisa. Confidenciou que ela era bondosa com os bichinhos na rua e que não conhecia ninguém naquele mundo que o incentivava mais a procurar seus sonhos do que ela. “Se um dia você for num restaurante meu, pode ter certeza que foi ela quem realizou esse sonho”, deixou escapar quase que sussurrando enquanto cumprimentava o senhor e cancelava sua viagem no aplicativo.
Subiu o elevador, pela última vez naquela noite, mais uma vez olhando para sua imagem no espelho. E estava sorrindo.
Tudo tinha voltado como era antes. E, para ele, isso era incrível.
O amor é só um desabafo bobo.