Quando a gente nem percebe que tá acabando | Do Amor #99
O ângulo da tela do celular na cara fazia com que ele não a visse. Estava ocupado naqueles dias, montando projetos novos no trabalho, uma possível guinada na carreira, um rumo que nem ele mesmo havia previsto, mas que estava acontecendo. Isso depois de tanto perrengue que ele passou nos últimos anos, dando murro em ponta de faca, tentando, cavando, apanhando feito cão. Mas agora parece que novos caminhos tinham se aberto, que uma possibilidade ótima estava ali, na frente dele.
Mas, naquele preciso momento, era só uma tela de celular, com o e-mail aberto e na posição exata que ocultava toda a figura dela, parada na frente dele. Restaurante cheio, conversas, barulhos, bagunça. Menos na mesa deles. No ambiente limitado da mesa onde os dois estavam, era só o silêncio e a distração. Ela batia com o cabo da faca na taça, para ouvir os diferentes barulhos e, num pensamento mais solitário, se ela conseguia quebrar a taça e, assim, conseguir criar alguma movimentação interessante para os próximos minutos. E ele, com o rosto na conversa profissional, vendo só luz e possibilidades. Não enxergava jantar ou mesa, não tinha tempo para dar atenção à sua companhia. Não seria ela, naquele momento, que lhe garantiria um futuro profissional.
Ela era parceira, sempre o ajudou nas transições da carreira, nas mudanças de trabalho, quando ele teve que enfrentar o ostracismo dos últimos tempos de crise. Ela o apresentou em empresas, para amigos do setor. Ela foi de grande ajuda, mas não naquele momento. Não naquele específico passo que ele estava dando. Naquela guinada exata, ela estava de fora. E ele focado no celular. Nas mensagens. E não na comida. Não na conversa. Não no vinho manchando a toalha de mesa quando finalmente em empurrou com a faca a taça, esparramando o acerejado do tinto no chão e na roupa dela. Nem isso tirou a atenção dele do que estava à sua frente, mas só o que estava extremamente postado à sua frente. Todo o resto não existia. Não viu ela se levantar e nem percebeu ela sendo amparada pelo maitre ou os garçons limpando toda a sujeira. Nem viu quando o táxi chegou e ela partiu.
Achou super desagradável quando pagou a conta sozinho. "Que desrespeito", pensou enquanto digitava a senha do cartão de crédito.
A gente precisa ser mais atento.
Quando foi mesmo que tudo isso acabou?