A filha o ajudou a sair do armário | Do Amor #139
Era uma espécie de deslizamento de órgãos em plena tempestade que estava sua mente naquela noite, deslizando monstruosa e feroz morro abaixo em seu estômago, sem aviso, sem alertas. De repente, um montão de tripas e sangue e amargor irrompia do peito até abaixo do umbigo, uma angústia que, de forma intermitente, mas sem ceder, lhe acometia. Precisava ter mais notícias, saber como seu amor estava, se tinha ou não testado positivo para a nova doença. Saberia em algumas horas, mas já tinha dias que não sentia odor algum e andava mais quebrantado, relatando perdas rápidas de fôlego no fazer das coisas. Decidiram, então, que precisariam, então, de uma constatação por meio de exame. Com isso, a espera se transformara nesse alude, num afogo que de hora em hora se derramava pelo abdômen e dava vontade de cagar. E chorar. Ia mais ao banheiro, defecava sem forças enquanto custava a abafar o choramingo quase adolescente. Não podia deixar a filha escutá-lo. Ela não sabia da relação dele, tampouco ele nunca confessara ser um pai que gosta de outros pais. Mantinha esse seu "eu" recôndito, oculto numa caverna só encontrada pelo amante. Estavam juntos havia um par de anos, se encontravam a cada quinze dias, passavam o final de semana colados por todos os pelos em qualquer cama de hotel. Pediam comida, não saíam para qualquer passeio, não pelo medo, mas para aproveitarem até a última gota os líquidos um do outro, o salgado da carne alheia, o desejo que o cheiro de sexo desesperado despertava em ambos, e pela completude dos seres que eram quando presos naquelas paredes alugadas.
Mas o distanciamento social bloqueou seus encontros e também o ser um gay às escondidas, um homossexual desperto só depois dos trinta e todos, já com seus cinquenta e lá vai cacetada. Não via sentido em se mostrar, não achava conexo cambiar sua persona, seus pês, pai profissional e provedor, só porque a cada quinzena ele ficava de quatro de costas para outro cara grisalho. Seria sempre aquele "ele" e deixara o novo "dele" só para seu amor, só quando seu cartão confirmasse mais uma estadia em qualquer suíte no interior ou na capital. Agora era só um senhor de meia idade preocupado secretamente com o namorado que estava a reclamar de sintomas perigosos. Queria correr pela avenida e pegar uma marginal e uma rodovia expressa até a casa do companheiro, abraçá-lo, medir sua febre, lamber-lhe os calafrios, até que tudo ficasse bem. Mas, além de estar no grupo de risco, não arriscaria sua filha, a pessoa com quem estava dividindo a quarentena. E não encontraria em seu íntimo desculpa que fosse plausível para estar com um desconhecido por conta de uma moléstia tão preocupante. Não eram amigos, ela nunca soube sequer o nome do outro cara. E então ele chorava em segredo, mastigava suas tormentas e engolia a seco um pavor mais sem fim.
Andava pela casa e quase se podia ver o rastro de lama, pés demorados, uma presença quase translúcida. Quando ela saiu do banheiro, reclamando dos cheiros recorrentes que o pai deixava, se deteve na quina da sala vendo um homem maltrapilho na alma, o rosto afundado nas palmas ásperas das mãos, lutando bravamente contra os soluços, solavancando os ombros para cima enquanto empurrava involuntariamente os ombros para baixo. E, aí, fechou os punhos e impulsionou seu corpo para frente, inclinada, até onde ele estava. Ao sentir a repentina presença da filha, o homem buscou a normalidade, claro, sem sucesso, batia suavemente as mãos na calça de moletom como se limpasse algo, como se buscasse se purificar. Pigarreou e chupou o catarro acumulado nas narinas, puxou bastante ar para falar grosso, para soar decidido, firme. Alguém possuído de convicções. E falhou miseravelmente. Balbuciou qualquer coisa sobre ligar a TV e sentiu os dedos gelados da filha em sua nuca. Sentiu também fuzilar-lhe um enxergar afetuoso, ela curvou-se e botou a cabeça do pai contra a barriga. E também chorou. Manteve um silêncio para deixá-lo cuspir aquele peso, depois se abaixou e encostou seu nariz no dele, olhos embaçados com olhos embaçados, sem se ver claramente, mas enxergando o íntimo um do outro. E ela deu sua benção. Disse ao pai que o amava e que ele poderia, também, ser aquele que tanto tentava não ser. Pediu para ele tornar-se também em casa, o amante que era fora, o namorado preocupado que queria ser. Disse que o amava, que ele era mais lindo ainda por ser quem era, por estar fazendo o que estava fazendo. Implorou que ele ligasse às claras para o namorado, para seu querido, que não se esgueirasse pelos cantos. Por um apertado instante ele sentiu mais uma avalanche na barriga, tentando compreender como ela poderia. E depois lhe veio a realidade na cabeça, que não fazia sentido algum cogitar que ela não soubesse de sua condição, dos seus risinhos tolos para a tela do celular, suas respostas vazias quando questionado do porquê da alegria, como um garoto quando tenta em vão esconder a pornografia debaixo da cama.
Pegou o celular e ligou para o namorado. Meteu na cara um sorriso ainda meio torto. Era um alívio, mas ainda assim, sentia-se embaraçado. Quando escutou o "oi" do outro lado e viu o orgulho estampado no rosto da filha, sabia que estava tudo bem. Levantou-se, com a mão abafando a parte de baixo do aparelho e movimentando os lábios nos dizeres "com licença", mas sem pronunciar som algum, e encaminhou-se para o quarto. De lá da sala ela pôde escutar zumbidos da conversa dele. Mas não se ateve a palavras. Era bom saber que ele estava livre.
O amor é gigante!