Não estamos felizes, mas não queremos desistir | Do Amor #167
A cena já é clássica, certo? Uma porta de qualquer apartamento na cidade se abre e o som de viatura e motos rasgando avenidas próximas penetra a sala do casal enquanto eles arrastam suas vencidas carcaças para dentro do imóvel. Dois restos de pessoas. Uma delas abandona a jaqueta no braço do sofá, a outra desprende do tornozelo a afiada sandália. Um par de copos com uísque e gelo e uma taciturnidade desoladora cobre com a penumbra o ambiente silencioso. Palavras naquele decadente instante só faria desabar a já abalada e sensível relação. Perguntas só fariam piorar, desculpas reacenderiam o desacordo. Havia sido uma noite ruim, a saída para o jantar que prometia alento e remanso, meia luz, oboé e línguas satisfeitas empenhou-se em devolver somente conversas tortas, uma velha desconfiança, as mesmas acusações. Sempre que a situação de embate virava discussão, nunca procuraram o entendimento, só o corte. Ver o outro fracassar era, naqueles tortos recortes de crueldade mútua, prêmio, a certeza burra de estar do lado de quem está só fazendo direito.
Ser detentor da verdade machuca para caralho. Só que, quanto mais sangra, menos os envolvidos enxergam dor, sofrimento, aflição. Retornam para casa sem ligar o rádio do carro, sem conversar no táxi. É tempo de escutar a si próprio e suas juntas de mais argumentos. Vão construindo diálogos inexistentes em que sempre, toda vez, eles terminam com a última fala, só eles sabem como calar o outro. Depois do treino, já descalços, um no tapete, o outro viassacrando entre quarto e banheiro, um xingamento finalmente expõe as rachaduras. O vulto que vem do corredor, em fúria, é o primeiro a cuspir novas agressões, a massa disforme na sala arremessa o duro copo contra a parede, as vias de fato nunca chegarão, as travas sociais os detém, claro, não fossem as consequências legais e morais e também as éticas, já teriam três diferentes planos para desovar o cadáver com a garganta lacerada, enterrar o corpo com o útero removido, carbonizados, liquefeitos em ácido, chutariam por quarteirões as cabeças já sem vida um do outro. Mas se viram com o que podem, tentam berrar mais alto, caçam na memória os insultos mais degradantes, a humilhação, a desmoralização mais completa de si e do outro. Só no inferno é que ele vai entender como foi errado comigo, só quando perder tudo é que ela vai perceber como eu era a única coisa correta na vidinha de merda que ela vive. E daí eles terminam.
Ou fazem que vão terminar. A simples suposição de que teriam de viver o resto dos dias que lhes restam sem o outro, sem a possibilidade de culpar o outro, sem a chance de realizar a estapafúrdia ideia de que ambos, juntos, formariam um lindo casal, provoca neles uma tremenda recaída. A raiva segue, agora porque um impossibilitaria a vitória do outro ao desistir. Atiram-se, assim, ao chão, um agarrado aos joelhos do outro, amassando calças, desmantelando as meias. Fazem juras de amor sincero, desacreditam a eventualidade de tudo desvanecer assim, numa briga. Entopem o nariz com choros colossais, juram mudanças, enxergam juntos que o paraíso se encontra no futuro próximo, onde as dores da relação ficarão para todo o sempre proibidas de entrar. Dormem o tranquilo sono dos enganados, cada um na sua própria cabecinha, afirmando ser tão bom saber que o outro entendeu tudo. E ninguém entendeu porra nenhuma. O jantar seguinte vai servir para arrancarem as cascas e verem verter novos sangues.
Miseráveis, porém um casal.