O amor é uma sonequinha da tarde | Do Amor #166

Fumavam um cigarrinho ainda na garagem, que era para não empestear a sala com o cheiro escroto. O costume era feito ainda em silêncio, uma cumplicidade velada de quem sabe que, aos setenta e alguma coisa, meter aquela merda de fumaça para dentro era uma grande cagada, Ai mesmo tempo, o que tinham a perder? anos de vida?

Entravam na sala, tiravam os tamaquinhos de salto bem baixo, uma delas penetrava por entre o sofá de dois lugares e a mesinha de centro fazendo ajustes pontuais na mantinha que adornava o encosto, no vaso abarrotado de pequenas violetas. A outra, aguardava a organização de última hora e buscava amenizar qualquer ansiedade boba da amiga, comentava o quão deslumbrante havia ficado o bordado da toalhinha, bendizia a riqueza de detalhes nos lisiantos roxos recamados nas quatro pontas, fingia-se distrair com o horário, fazendo conjecturas em voz alta do que deveria estar passando àquela altura na televisão. A amizade abocanhava aquelas duas senhoras já tinha cinquenta anos, se conheceram nas Casas Bahia, quando ainda gozavam da solteirice. Casaram-se, uma desquitou doze anos depois e a outra manteve-se em matrimônio até enviuvar, já tinha um tempinho. Disso para cá, desenvolveram uma parceria ainda mais aproximada, vicinal. Tomavam café com bolo religiosamente às segundas, quartas e sextas, dividiam os revezes no bingo na terça de manhã e bebiam conhaque para atenuar o começo de tarde. Fumavam sempre antes de entrar em qualquer que fosse das casas e todos os dias, sábados e domingos inclusos, assistiam algo juntas na tevê. Fosse o que fosse, até porque, o intuito nunca fora o de prestar atenção em algum programa de auditório ou bancada de fofoca, mas tagarelar entre elas até que viesse o sagrado sono do meio da tarde. A dona da casa acomodava-se no sofá de três lugares, entre a janela e o corredor dos quartos, e a visita sentava-se no sofá de dois lugares, que dava para a porta de entrada. descalças, subiam os pés nos espaços vazios, depois deixavam que seus corpos deslizassem até que ficassem confortavelmente deitadinhas. A dúzia de almofadas com motivos de borboletas púrpuras passava a ser caçada para ficar entre os joelhos, debaixo daquelas duas cabecinhas brancas e daí, sim, os óculos escorregavam até o peito, roncadelas passavam a fazer parte da trilha sonora, junto com os murmúrios do televisor. 

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Às vezes, quando uma delas dormia antes, a outra pegava também no sono admirando a colega, contando as flores grandes na estampa da camisa dela, elogiando mentalmente a qualidade da elanca no shortinho dela. Era extremamente agradável contar com alguém para dividir o sono, o conforto da companhia, a segurança de saber-se acolhida, assistida. Então dormiam. Sempre juntas. Todos os dias. E lá, deitadas, as duas, no aconchego da preguiça, uma disse a outra: "Amiga, eu te amo". E não escutou resposta. Não pela maldade da comadre, a indelicadeza era cega naquele momento, tratava-se apenas do atraso, decretar sentimentalidades por alguém que já estava dormindo o sono das velhas. "Eu também te amo" finalizou, ainda em voz alta a que ainda estava acordada, já com a intimidade de quem pode falar pela companheira. E, após um prazeroso e demorado suspiro, também pegou no sono.

 O amor é siesta.

Jader Pires