Ensaio sobre a abstinência | Do Amor #169
E naquele dia ninguém transou.
O carteiro despertou mais tarde. O frio intenso que fazia lá fora o fez ficar mais um pouco na cama. Mas ele gostou. Apreciava mais a tensão gélida que a previsibilidade preguiçosa dos dias quentes. Não que a opinião fizesse dele uma pessoa gélida. O carteiro era um tremendo de um tarado. Casado há mais de quinze anos, traía sua mulher com qualquer divorciada carente de uma boa trepada. Todos os dias ele saía logo cedinho para atravessar a pequena cidade levando consigo as correspondências do dia. Entre uma andança e outra, entregava cartas e pequenos pacotes de produtos comprados pela Internet a mulheres que moravam sozinhas ou que eram rejeitadas pelos maridos no viver da relação matrimonial. Ele conhecia todos os bairros e cada um dos moradores de cada uma daquelas casas, afinal, ele era o carteiro. Conhecia bem o endereço de jovens senhoras ávidas por um carinho mais violento. E ele dava esse carinho. Ele sabia ser violento. O carteiro chegava, como quem não queria nada, e, como quem ainda não quer nada, trocava algumas palavras com aqueles pares de olhinhos tristinhos que via nas mulheres que dormiam sozinhas em camas enormes e pouco aquecidas como seus próprios coraçõezinhos. O carteiro ia lá e comia todas elas.
Naquela manhã ele foi ao bairro nos fundos da cidade, uns casebres sem cor perto da encosta. Lá morava uma mulher. O marido dela trabalhava à tarde e não havia gente em casa depois que ela chegava do levar as crianças na escola. Sozinha até o comecinho da noite, ela passava horas vendo pornografia no celular e se masturbando. E o carteiro foi entregar umas cartas na casa dela.
A mulher estava em seu quarto ouviu a campainha tocar e desceu as escadas aos saltitos, enfiando de volta o shortinho rosa do pijama. Abriu a porta sorridente e viu que seus pelos no braço estavam eriçados do frio que vinha da rua. O carteiro percebeu a cara quente da mulher que, por sua vez, sacou o tesão que emanava daquele velho tarado. Mas foi só isso. A mulher recebeu suas encomendas, rabiscou o papel que tinha para assinar, ainda ficou uns segundos tesa na porta, suportando o frio. Deixou o carteiro memorizar detalhes de seu corpo, uma pequenina gorjeta de inverno. O carteiro fez exatamente o esperado, examinou cada micromovimento daquele corpinho estremecido pelas lambidas que os ventos lhe dava. Estendeu a mão num movimento débil, como se pedisse silenciosamente para tocar num dos seios da mulher. Ela nada disse. Só baixou as vistas para reparar os dedos gordinhos e perdidos do carteiro. Ele não a tocou. A mulher fechou a porta e subiu novamente para o quarto. O carteiro seguiu seu caminho com destino à próxima rua.
Do outro lado da cidadezinha, o caixeiro viajante chegava depois de três longos meses. Foi vender bugigangas tecnológicas nas vilas tropicais, uns lugares quentes pra diabo. Estava feliz em voltar. Sentia saudades da esposa. Entrou silencioso em casa e a encontrou lavando louças. Agarrou-a por trás e mordeu seu pescoço com dentes há muito esperados. Notou as pernas da sua dona estremecerem, as mãos largando a louça cheia de espuma. Apertou as ancas de sua senhora, puxou seu quadril para junto de si. O caixeiro viajante então virou sua esposa quase que num rodopio e encheu a boca dela com sua língua. Foram doze longas semanas sem aquele beijo, distante daqueles cabelos cacheados que teimavam em cair no meio das bocas daqueles dois. O caixeiro sentou-se em uma das cadeiras da cozinha e colocou a mulher para se sentar em seu colo. Ficaram horas se olhando, trocando sorrisos bobos e afagos demorados. Conversaram, comeram bolo com café de mãos dadas.
A noite caiu e casais de namorados foram vistos para lá e para cá, zanzando de carro pelo centro. Naquela noite, nenhum veículo ficou com os vidros embaçados. Nenhum furgão foi visto atrás balançando das placas da entrada da cidade e ninguém foi atrapalhado pecando de calças arriadas atrás da igreja. As prostitutas do único bordel não trabalharam a noite toda. Vararam a madrugada bebendo e conversando. Os vaqueiros que costumavam atrás delas caíram bêbados pelo chão e dormiram o sono dos justos. Deixaram pagas as visitas, no entanto.
Foi uma madrugada pacata e bem aproveitada. A cara de satisfação geral acusava os bons ventos, logo na manhã seguinte. Pessoas com aura de gostosura faziam suas tarefas com um afinco nunca visto. Os vereadores da cidade conseguiram um fato inédito, até. Iniciaram as sessões com horário britânico e sem nenhuma ausência. Desatolaram várias das centenas de medidas que ainda estavam pendentes. Naquela manhã, nenhum ônibus atrasou na cidade.
O carteiro despertou bem cedo para ir trabalhar. Saiu todo empacotado de roupas para não congelar com o frio que fazia. Saiu preguiçoso na varanda, sentiu os primeiros sopros gelados chegando, a ponta do nariz já vermelha, e perdeu a pressa. Chamou sua esposa e pediu para que ficasse ali, de braços dados com ele. Passou bons minutos em silêncio ali, com sua inocente companheira, vendo as folhas caindo leves, evitando violência com o chão. Uma rajada mais danadinha veio por baixo e pegou o casal de surpresa. O carteiro se assustou. Sua esposa teve um orgasmo.