Claro que ele não vai me comer, né? | Do Amor #170
Trabalhar com o que se gosta, aquela coisa toda, é nunca mais trabalhar e o diabo. Eu gosto do que faço. Sou um bom músico, não estar no mesmo lugar dois dias seguidos me agrada, o assombro com o desconhecimento, o túnel a cada fim de túnel, o recomeço dentro do recomeço, avesso do avesso do avesso. E trabalhar com um cantor tão fodão como ele, porra, ô sorte, naquela cidade maravilhosa, o mar todo encrespado logo cedo, cor vermelho-arroxeado, como se quisesse nos machucar de volta. Seria, definitivamente, um bom dia de trabalho. Dois ensaios, manhã e tarde, com a apresentação no cair da noite.
Principiar o dia com aquela gente, os suores, a gana. Me botava como parte importante do ofício reparar os rompantes artísticos dele para inverter a lógica do dançar conforme a banda toca. Lá, a banda tocava para ele dançar. E ele dançava igualzinho um furacão, arrasando palcos, batendo os pés com as mãos grossas na cintura, rodando, girando, corrupiando em volta da gente sugando a nossa atenção, destelhando o peito alheio, apocalíptico. Um baita cantor. Um privilégio. A voz dele, por outro lado, sereníssima, ambrosia escorrendo pela boca, entre os dentes grandes amarelados pelo tempo dele na Terra. Um sorrisão sabido. Era mesmo um acontecimento. E nós, a banda de apoio, nos restava apenas contemplar o privilégio. Dar para ele tudo o que ele precisasse para que suas apresentações lhe fossem deveras satisfatória.
Passamos som, juntamos cabos, tocamos para ele ouvir, repetimos para ele corrigir. Conversamos em roda, ele tirava ideias entre os goles de suco, nos aconselhava baixo, a gente inclinando a cabeça para chegar mais perto, escutá-lo mais de perto. Fui dar uma volta sozinho na praia, as melodias brincando levadas na memória enquanto eu fotografava as linhas contínuas do Corcovado e dos corpos correndo da água de volta para a areia, levantando bolas com os pés descalços. Na volta, tinha um recado na recepção me aguardando. Era um bilhete dele, pedindo encarecidamente que eu avisasse ao recepcionista da minha chegada para que pudesse ter com ele. Alguns integrantes da banda de apoio que estavam no bar do lobby no hotel também estavam sabendo, o cantor queria passar alguns detalhes comigo, sobre minhas escolhas para o que fazia o meu instrumento no show dele. Nada periculoso, todos gostavam do meu trabalho. A ideia era tecer em cima de minúcias. Deixar ótimo o que já tava bem bom. O cantor havia trocado detalhes com todos. faltava só eu e era necessário que eu subisse até o quarto dele, pedido direto do cantor para o recepcionista. O cantor estaria me esperando. "Cuidado lá, Renato, que ele é comedor, hein", brincou alguém da equipe de produção. Rimos, um cara hétero pegando o cantor transão. Comentei gracioso que seria até legal imaginar aquele medalhão da nossa música interessado num reles baixista de jeans largo. Me dirigi até o elevador, pressionei o andar em que ele estava. "Jamais ele ia querer me comer", mencionei antes de a porta metálica se fechar.
Era um cômodo amplo e bem iluminado, as cortinas abertas, a maresia acre tomando conta do recinto com as lufadas de ar que chegavam do oceano. O cantor estava sentado de roupão na mesa redonda no canto oposto ao da varanda. Rabiscava papéis com ímpeto e tamborilava a borracha que ficava na ponta contra a mesa, como que chamando ritmos. Me pediu pra sentar na poltrona, perguntou se eu queria algo para beber. Falamos de música e trabalho, os ossos doloridos do ofício. Ele botava pensamentos nas folhas soltas da mesa de vidro, eu notava o alongamento sensual da testa dele cabeça adentro, o nariz adunco, a respiração quente na minha mão enquanto eu apontava o que deveria escrever nas correções que fazia. Contei das peripécias da minha filha de oito, ele meteu um doce nos olhos, seguimos rindo dos times que não venciam o nosso, conjecturarmos tempo e espaço, vida fora do planeta, questionamos a razão da existência. Enquanto matutávamos, ele puxou minha mão e eu deixei. Ele me beijou e eu deixei. Ele me botou de quatro na cama e eu não disse não, não.
E não é que ele queria me comer mesmo?