O divórcio de quem não estava mais casado | Do Amor #152
"Estamos separados, né?", saiu a pergunta da boca dela de forma clara, mas seu rosto ainda imprimia uma ironia quase incrédula ao externar tal dúvida, como se uma das pontas do lábio superior fosse içada por uma finíssima e invisível linha de pesca, como se fosse fisgada sem se dar conta por aquela situação, enquanto ele, dono de suas certezas, caminhava pela sala que um dia fora deles enfiado num shortinho curto que a deixava até que sedenta por alguma brincadeira suja, afinal, mesmo não mais sendo casados, eles trepavam gostoso quando o santo batia. E, por este recorte, até que não haveria de ter qualquer problema, não faltam por aí os pares ou trios ou quadrilhas que se separam e seguem metendo juntos e rindo juntos. "Somos todos adultos, certo?", diriam todos eles. Só que o quiproquó estava no fato de ainda viverem sob o mesmo teto.
Namoraram ainda no colégio, logo na primeira saída juntos, no cinema. Escuro, a saliva grossa dela na boca dele, os dedos quentes dele nela, pedido e confirmação. Se casaram com o mesmo ímpeto, depois de uma traição dele, depois do arranca-rabo que foi quando ela descobriu, depois do "então vamo casar", dito em voz grossa e alta por ele, como se o matrimônio tivesse o mágico poder de resolver aquela quizumba. Resolveu. A briga, não a relação. Tiveram um péssimo início, a pior das adaptações, ele viajava para trabalhar em plataformas, quinze dias fora, e ela veio de uma criação fechada, super apertada, e não sabia nem ainda ao mercado sem ligar para a mãe num indireto pedido de permissão. Ele, tubarão, ela peixinininha de aquário. Cresceram, mas sozinhos, sós e solitários, cada um em sua realidade, e não em parceria. Acontece. Eram jovens parecidos e tornaram-se adultos estranhos, um par de forasteiros a falar línguas distintas e dormirem só depois de diferentes rituais. Um lá e um cá. Um mal na terra, um mal no mar. Quando ela soube de uma nova traição (quando não soube das outras, claro que não teve maiores problemas), resolveram se separar também nos papéis. "Não tá dando mais pra mim", disse ele num tom de vitimização, como se fosse um pecado ser acusado de estar comendo outra garota quando ele estava comendo outra garota. "Ótimo", pontuou ela mais em tom de cansaço que de concordância. Mas concordaram. Se separariam. Foram para a cama juntos, já era madrugada e bons brasileiros deixam qualquer querela pra daqui a pouco em troca de uma boa noite de sono.
E foi o término que não terminou. Passaram-se uns dias e duas semanas e três meses. Ele levando uma já ansiada vida de solteiro, ela trabalhando a própria rotina para recomeçar a vida agora sozinha, mas ambos voltavam no final do dia para a mesma casa. Aquela de quando eles eram um casal. Davam-se ois e olás, cada um tentava manter mínima presença para não atrapalhar o fim do dia do outro, quando de esbarravam, o choque provocado causava uma estranha reação de fazer as peças de roupas voarem pelo corredor enquanto eles sugaram os gostos um do outro, sem discussão, sem proferir qualquer fala sobre relacionamentos. Mas esse recorte ficou inviável, o desconforto não compensava a sentada no rapaz, e então ela questionou "estamos separados, né?" para poder complementar com "então a gente pode conhecer outras pessoas" e, enquanto esse restante escapava pegajoso por entre os dentes, um invisível e onisciente narrador soprava no ouvido dela "inclusive, ele já está. Conhecendo. Outras. Pessoas". Só que, pra ela se sentir confortável para conhecer. Outras. Pessoas, ele precisava não estar mais lá. Não fazia, mais, o menor sentido ter um ex-marido dividindo pote de manteiga na geladeira. Alugou um apartamento para ele, três meses depois, e decidiu separar tudo de vez. Fizeram uma mudança lenta, cada dia ele levava um item. Mas acabou tudo, em janeiro. O mês seguinte trouxe carnaval e ela se lambuzou. Voltou das festas com um garoto da academia, brincou por dois meses, mas aí um cara do Uber a levou para casa e não saiu de lá nunca mais. Namoraram, se aproximaram, foram morar juntinhos.
O ex-marido não virou mais companhia de sexo. Aparece ainda para manter as promessas de guarda compartilhada com a cadelinha e geralmente eles conversavam com a tranquilidade de quem não precisa mais mostrar o melhor de si um para o outro. Nessas falas, parece que tudo se desenvolve com mais tranquilidade e delicadeza, até riem das infantilidades que julgavam ser sabedoria no passado. Certa feita, ele apareceu na casa dela no meio da tarde, estava sozinho e a encontrou também sozinha. Subiu, trocaram dois beijos na sala, avançaram meio colados no pequeno corredor e foram direto para o quarto. Ficaram quietos uns minutos, como se tivessem se permitido escanear um ao outro, da cabeça aos pés, corpos, sentimentos, o passado. Ela tava com pouca roupa, respirava forte, ele gostava de ver o movimento da camiseta. Não se pegaram. Não se tentaram. Ela perguntou se ele estava feliz com a namorada, aquela que ele tinha pego enquanto estavam casados e que foi o escorrer pela tampa do casamento deles. Ele respondeu que sim, e ela sorriu um sorriso amável, deixou os olhinhos brilharem, estava satisfeita com a resposta, leve por saber que ele estava bem. Percebeu ele tentando segurar os lábios para dentro da boca, como se buscasse inutilmente conter as palavras que sairiam a seguir. Ele confessou que havia sido muito impaciente com ela na relação que tiveram, e que necessitou ter um outro relacionamento para perceber. Se desculparam rapidamente por qualquer rinha lá de trás, concordaram que não deveriam mais estar juntos mesmo. E ali, sem falar mais qualquer coisa, sem precisar expressar que tinha acontecido o que tinha acontecido, realizaram que estavam novamente terminando a relação. Era um novo término. Ele se levantou e foi viver sua nova vida. Ele o acompanhou até a porta, e depois foi arrumar a casa onde viveria sua nova vida.
Que bom que não tinham mais um ao outro. E que bom que sempre terão um ao outro.
Obs.: este é um conto baseado em histórias reais e produzido no meu projeto Cartas de Amor, em que escrevo a história das pessoas sob encomenda. Quer saber mais? Vem cá ver como funciona tudo isso!