O não falar do que precisa ser dito | Do Amor #153
A vontade dela era pegar de novo as chaves atiradas no cestinho de vime e ir de volta para a rua, só para não ter de lidar mais uma vez com outra briga. Não conhecia mais argumentos que o fizesse deixar a louça limpa, havia aceitado ter, diante dos olhos, na pilha de pratos engordurados, a iminente derrota. O problema em questão era o atraso. Combinaram mutuamente de deixar as coisas da cozinha no jeito antes de dormir ou logo na manhã seguinte, para não acumular, não deixar o cheiro empestear a casa, a textura grudenta colar. Era a vez dele. Era. Já podia ter chegado em casa com a pia limpa e seca. Não se tratava de picuinha, ia pensando enquanto soltava as sacolas no chão em busca do borrifador de álcool na prateleira, era só a porra de um acordo, ela não precisava viver no jazz, no improviso.
O barulho que ele fazia ecoava por todo o corredor do décimo andar. Chegou assobiando, já com a máscara pff2 pendurada na orelha desde que saiu do elevador, os fones de ouvido berravam a "54-46 was my number" dos Toots e ele vinha batendo as pesadas botas no chão a cada pedido da canção, give to me one time and two times. Ao passar pela porta, não pensou nela. Sabia que ela já havia retornado porque viu as coisinhas dela onde ele também jogava a carteira e os óculos escuros. Sacolejou com a música na cabeça até a cozinha, querendo desinfetar a mochila, e deu de cara com uma cuba espelhada, brilhando, e um escorredor abarrotado de pratos. O trato na semana de ser ele o responsável pela louça reapareceu em forma de flashes em sua memória, detalhes de ela explicando as incumbências dela e ele tomando as rédeas das lavagens, roupas e louça, vaso e box do banheiro. O movimento repetitivo com os olhos, espiando as gotas que ainda caíam dos pratos e a porta de saída da cozinha explicitaram a confusão dele. Deu dois toques leves na orelha, pausou o disco, enfiou os fones na caixinha que ainda tava no bolso e pôde, enfim, escutar alguns ruídos vindo do banheiro. "Cara, se ela estiver esfregando a privada, eu nem sei o que".
Enquanto ela arrumava a caixa de maquiagens, seu corpo esquentava a cada segundo que não ouvia um oi dele, qualquer pergunta, se ela estava bem, um agradecimento por ter se adiantado e cuidado da bagunça tardia lá na cozinha. Um reconhecimentozinho que fosse, "mal aê, na próxima eu". Mas nada. Percebeu o vulto atravessando até o quarto. com calçados, calça, camiseta e moletom atirados no chão, ele tentava dizer sem palavras que estava bem puto, zanzando de um lado para o outro em frente a cama formando um discurso sobre confiança, sobre responsabilidade, uma afirmação sobre não tentar ser responsável sobre a responsabilidade alheia. Se ele bateu no peito que lavaria a louça, a louça deveria estar lá para que ele cuidasse dela. Claro, ela teria toda a liberdade de, segundo o raciocínio dele, comentar sobre melhorias, sobre diminuírem as quebras, sim, ele atrasou um serviço importante, mas a quebra na convicção machucava demais, não tinha intenções de viver com uma figura materna a cobrir suas falhas e ainda fazer olhares de reprovação dias a fio. Ela também não buscava ter essa vocação materna para apontar as falhas alheias, de novo e outra vez. Menos ainda para ser mulherzinha de homem mal educado que não enfrenta um olá no banheiro. A figura indistinta dele passando só de short a fez segurar ainda mais o ar para não gritar, não mandá-lo tomar no cu de saída. "Pelo menos vamos ver se ela deixou o lixo pra eu levar pra fora". Já tava tudo arrumado, três saquinhos azuis na lavanderia. Quando voltou, ela já estava no quarto e aproveitou para tomar banho. Foi do chuveiro direto para a sala. Ela não transitou pelo apartamento nas duas horas que se seguiram. Ele no sofá, com fome e empurrando para o lado no celular fotos de casas no Airbnb e ela querendo jantar, mas procurando com o que se ocupar no guarda-roupas. Ele encontrou coisas bem interessantes nas redondezas, ela achou a mala que eles usavam juntos para viajar. Ele se imaginou morando em outro lugar. Ela fantasiou encher aquela mala velha com todas as suas coisas. Ele se mudando. Ela saindo. Ele explicando para os amigos o motivo do novo lar. Ela contando para a nova namorada o conteúdo do bilhete que deixou na cômoda dele. A louça lavada. ele se levantou para dar uma mijada e deu de cara com ela pegando uns cotonetes.
"A gente precisa conversar", disseram em uníssono.