Preciso fazer análise porque traí a minha mulher | Do Amor #154
Quem olhasse pra cara dele imaginaria um cheiro horroroso nos arredores, algum cocô do cão escondido na sola dos sapatos ou então aquele azedo de vômito de criança que podia ter estado ao lado dele momentos antes. Sua face se assemelhava a uma verruga velha e ressequida, grandona, do tamanho da cabeça toda. Os olhos dele obedeciam a uma letargia quase tocante e os dentes insistindo em repetir movimentos tonitruantes, atritando os de cima contra os de baixo numa tentativa vã de mastigar a própria culpa. "Senhor Leopoldo Vidal", a moça do balcão anunciou sem tirar os olhos da tela do computador. "segunda porta à direita", complementou quando percebeu o vulto se levantando na visão periférica. O homem seguiu em passos morosos, como se quisesse que seu atraso fizesse o consultório esvaziar da doutora, ou melhor, terapeuta, psicóloga, psiquiatra, psica, psica, psicanalista, ele avançava tentando lembrar quem diabos ele iria ver, e o que pombas diria ao chegar lá. A sala era aprazível e bem iluminada, com uma poltrona roxa se destacando do resto dos aparatos e decorações que variavam entre branco, bege e gelo. também tinha uma estante, ao fundo, com livros e bibelôs que não lhe prenderam a atenção para saber que eram, assim, no detalhe. A mulher que aguardava seu novo paciente estava sentada de pernas cruzadas na ponta de um sofá coberto com uma mantinha e umas almofadas de tamanhos diferentes. Ela concluiu algumas anotações no caderninho e se dirigiu a ele, já de pé, para que se sentasse como preferisse na poltrona roxa.
Um minuto, dois e três. O duelo de silêncios foi vencido por ela, já que foi ele o primeiro a perguntar como andavam as coisas. Escutou da mulher de pernas cruzadas que ele estava lá para começar um processo de entendimento dele, do mundo ao redor dele, das coisas e das pessoas. Não afirmou que seria rápido e nem que ele entenderia isso tudo, mas que teriam, juntos, este objetivo. Escutou também ela perguntar se havia com ele algum motivo específico para ter ido em busca de auxílio. E ele tinha. Afirmou com a cabeça já recheada com as lembranças do acontecimento. A língua curiosa dela dentro da boca dele, a mão curiosa dela dentro das calças dele, o fresco dos lençóis dela nos pés grandes dele. Sem delongas, ele contou que havia traído a esposa num desmedido ato, que estava se sentindo um trapo, que mal conseguia olhar nos olhos dela. Revelou ter sido levado pelo momento, disse que, se pudesse, até voltaria no tempo, assim poderia viver sem aquele desconforto todo que lhe acometia, na concentração em frangalhos, no corpo cansado. Deixou que a mulher terminasse suas anotações no caderno, permitiu a ela ter tempo de olhar pela janela, a claridade machucando os apertados olhinhos dela mesmo por trás das enormes lentes dos óculos pretos e quadrados. "Então você está aqui porque tá arrependido de ter traído sua mulher", perguntou enfim a terapeuta. E o que ela recebeu não foi uma confirmação de sua teoria clínica, mas do oposto. "Não, doutora", ele retrucou enquanto colocava o peso do seu corpo para frente, para melhorar a fala. "Eu quero trair ela mais vezes. Eu tô aqui porque não quero é sofrer a culpa que eu tô sofrendo, entendeu? Eu nunca fiz o que eu fiz com aquela garota do jeito que eu fiz com aquela garota com outra pessoa, com minha mulher. Eu quero mais daquilo. Não quero terminar, não adianta eu ficar com a outra garota. É a situação. Foi o erro, o equívoco, o deslize, o ato criminoso, libidinoso. Eu quero trair minha esposa com tudo que é dona que eu conhecer nessa vida. A senhora me entende? Me ajuda a parar de sofrer. Por favor", finalizou ele com as mãos em prece, os dedos afilados todos eretos, dedo com dedo, palma com palma, anelar direito sem aliança com anelar esquerdo com aliança, daquelas grossas, dourada, que se via ao longe.