E se não tivermos mais Londres? | Do Amor #155

A frase ao estilo Casablanca era entoada às graças, de vez em quando, quando se despediam. "Sempre teremos Londres". Trabalhavam juntos e trepavam juntos também, mas a primeira incumbência era de conhecimento geral e a segunda, não. Tinham uma relação secreta, pero no mucho, mas ainda assim, não declarada. Era melhor para a carreira de cada um. E também era gostoso, tinham de se comunicar com ironias, como a citação adaptada do filme de quarenta e dois, já que constantemente precisavam viajar à capital inglesa a trabalho e, lá, pintavam e bordavam, caminhavam de mãos dadas, ficavam encaixados no táxi preto ou no transporte público. Metiam bêbados e riam entoando o fastidioso sotaque britânico. No Brasil, em São Paulo, amigos. De trabalho. Mantinham, no tácito convívio, um acordo axiomático. "Só vamos fazer o que nos agrada". Essa era a regra. Como não namoravam, a união entre eles se daria apenas por prazeres e bons tratos. Nada de convites para batizado de sobrinho, nenhum compromisso se transformaria em prisão, não haveria negociatas. Era para ser leve, precisava terminar sempre com sorrisos, como quando, ao cobrar um relatório, ele teve o dedo em riste chupado por ela no corredor vazio do andar que ele trabalhava. Na mesma noite, feito rastilho de pólvora, acabaram quebrando parte do banheiro da casa dele. Riram. 

unsplash-image-DH6rWTYYQ_8.jpg

Certa feita foram convidados para a festa de um amigo ali mesmo da empresa, um que tava sofrendo do mal de amor, na fossa. Ao ser chamada por ele, Ela botou os olhos no fim do corredor procurando um motivo para dizer não, mas, não encontrando escusas, não tinha gato em casa ou avô saindo da capoeira para buscá-la, aceitou. Na casa do cara chateado, seis ou sete escutavam música e tentavam animar o papo. Contavam piadas, trocavam canções no toca-discos. Mas os silêncios teimavam em aparecer. "Porra, eu preciso de algo que seja mais que cachaça", comentou o colega deprimido. Um dos convidados, aproximando e botando as mãos no ombro do rapaz, sugeriu que tinha, no banheiro, uma coisa que pudesse ajudar mais que o álcool. Formou-se então uma fila indiana de narizes curiosos. Inclusive do par dela era o terceiro da linha. Encaixou o filete metálico na narina, aspirou a cocaína e não deu dez minutos para que todos os maravilhosos estímulos tomassem conta da boca seca, dos olhos injetados, do maxilar travado. Desperto. Vigilante. Passou o restante da festa falando demais, recontando histórias já sabidas, sem que ela pudesse complementá-las. Molhava com uísque a língua ansiosa e ressecada e, quando chegaram na casa dela, lá pro meio da madrugada, o pau dele não subiu nem com as insistências da boca dela. Deixou ele dormir e também se recolheu. 

Na tarde seguinte ele comprou uns pinos. Na semana seguinte, de novo. Não houve outro dia na vida dos dois que ela passasse sem vê-lo ou saber que ele tinha cheirado. Notava o rastro de pó branco na pia da casa dele, plásticos poeirentos espalhados no carpete do carro. A primeira vez que ele faltou sem motivos no trabalho a fez carregar o celular três vezes de tanto tentar ligar e atualizar à toa o aplicativo de mensagens sem respostas dele. O companheiro passou a deixá-la plantada na entrada do prédio da empresa para cheirar no banheiro. Abandonava a cama dela no meio da noite para garantir cheio o estoque de pó. Não transavam mais, desfrutavam pouco da companhia um do outro. Ela não embarcava na esquina paranóia delirante que ele se instalara e ele não comprava mais a calmaria de estar com ela. 

E ele sumiu. Pediu demissão em um setembro bem gelado, ela ficou sabendo só porque comentaram na empresa da festa que ele deu. Ela não sabia como havia sido. Não estava lá. Passaram três anos sem se falar, ela ficou sabendo que ele tinha ido para o Recife, até que do nada, recebeu uma notificação de pedidos, dele, para desbloqueá-lo das redes sociais. Mandaram mensagens amedrontadas, ela de imaginá-lo bem sem ela, ele de não querer espantá-la. Conversaram, trocaram elogios e vontades, ela foi dormir derretidinha. Quem sabe poderia comprar um voo para Pernambuco no começo do verão, nas festas de fim de ano, poderia pegar uma praia com ele. Seria uma boa conexão para Londres, talvez.

Na manhã seguinte, alguém publicou no Linkedin que o cara que ela havia se apaixonado e reencontrado havia morrido de parada cardíaca decorrente de uma overdose.

O amor é injusto pra caralho.

Obs.: este é um conto baseado em histórias reais e produzido no meu projeto Cartas de Amor, em que escrevo a história das pessoas sob encomenda. Quer saber mais? Vem cá ver como funciona tudo isso!

Jader Pires