A carne ou o couro? O caçador e a nossa ansiedade | Do Amor #156
Este passado é de uma época em que se chamava a esposa de mãe. "Ô, mãe, joga os mato fora que hoje a gente vai comer é carne!", gritou saindo da mata. Com o inverno chegando, necessitavam de provisões que evitassem qualquer problema na com a escassez de alimento.
Aquele final de outono já estava dando um trabalho danado, muita busca e pouca caça, dias e mais dias comendo caldo de verduras pesadas para aguentar o tranco. Moravam em uma casa simples e longe de tudo, tinham a rotina de cuidar da pequena horta, bater a terra dos móveis, lixar alguma coisa, costurar e cozinhar. Andar pela mata também lhes era uma das obrigações, para ver se encontravam algo de comer, se estavam todas as coisas do mundo em seus devidos lugares.
Os animais, naquela época mais gelada do ano, se refugiavam para os lados da costa e o perímetro ficava um silêncio só. Era momento de contar mais com a sorte. E ela veio naquele dia em que ele chegou gritando e puxando o bicho por uma corda. A esposa saiu da casinha limpando as mãos no avental e encheu os olhos de água antes de abraçar o marido. "Mas meu deus, pai, se tivesse mais gente aqui dava era para fazer uma festa com isso tudo!". Era um animal lindo, patas longas, bem esguias e com uma barriga enorme, muito lombo, sem chifres, olhos que mais pareciam duas bolinhas de madrugada. Cabeça baixa, exaurido. O marido não precisou nem abatê-lo, foi só jogar o laço e trazê-lo consigo. Devia estar perdido, indo para os lados da beira-mar provavelmente. Não era muito comum ver um desses por aquelas bandas, o que indicava o desnorteio dele.
"Corre lá, mãe! Joga os mato fora que hoje vai ter banquete!", ele falava enquanto batia de leve nas costas do bicho amarrado já ao pé de uma árvore. A mulher entrou tão leve que quase não deixou rastro pelo chão. Ficaram lá fora o animal e o marido.
E o homem olhava o bicho de cá, dava voltas ao redor do pobre coitado e fitava-o de lá. Começou a reparar na pelagem linda da caça, de um laranja intenso. Dava para vender o couro todinho e ajudar na proteção do frio que estava vindo. poderia ir até a cidade e trazer para casa mais mantimentos com o resultado da venda. Esquadrinhou a preia procurando cortá-lo sem agredir os pelos. Mãos no queixo, coçava a barba e imaginava como poderia tirar o couro sem perder boa parte da carne.
Entrou em conflito. Se ficasse com a carne, perderia o fino do couro. Se escolhesse o couro, acabaria sem boa parte da carne. Deixando o pelo de lado, teria bom alimento para dois dias ou mais, uma fartura que não via há meses. Se optasse pelo couro, conseguiria muito mais alimento da cidade. Mas demoraria dias até deixar o couro preparado e ainda mais dias no trajeto de ida e volta da cidade. Enquanto fazia contas e separava os prós dos contras, alisava a cabeça felpuda do animal. Olhava os olhinhos negros se fechando lentamente e abrindo também sem pressa alguma, o pescoço de mecha branca inclinando. Tirava a faca da bainha, apontava à distância para a barriga do bicho, mirava o começo da garganta. Fechava um olho e estabelecia metas para logo após desfazê-la e pensar em outro plano.
O animal, sem muito para onde ir, se deitou na terra batida. O homem torcia os lábios, cruzava os braços, botava os olhos no céu, entortando a cara em dúvidas.
A ansiedade chegou, a insegurança tomou conta. Levantou o chapéu e tirou o suor frio da testa com a manga da camisa. Gozar agora ou vencer lá na frente? O estômago do homem passou a queimar e sentiu o atrito serrilhado da faca rasgando o talho de ponta a ponta em um só avanço. A corda caiu no chão e o animal, assustado, correu para dentro da mata e desapareceu.
"Ô mãe, pega os mato lá de volta que hoje a gente vai comer o que come sempre", o marido comentou lá de fora. O ar gelado o tocava de forma agradável no rosto e lhe deu uma vontade súbita de abraçar sua mulher.
Obs.: essa história é inspirada na tradição oral do interior. Aprendi a narrativa com a minha avó, que aprendeu com o cunhado vinte anos mais velho que aprendeu com um amigo que aprendeu com seu avô.