A Dupla (ou como se encontrar com si mesma) | Do Amor #157

Depois de criar minimamente os dois filhos, foi viver a vida. Experimentou cedo a satisfação da gravidez e as algias do parto. Deixou de lado, assim deu à luz pela primeira vez, os deveres externos. Seu ganha-pão, todas as pompas da posição que ocupava em uma  empresa e foi ser mãe. Foram alguns anos de sorriso no rosto e suor na testa, entre recreios e adestramentos. Aprenderam a engatinhar, conseguiram andar sozinhos e hoje praticam seus esportes preferidos depois da escola, gosto por movimentos herdado todinho dela. Chegou hora de abrir espaço e se olhar de novo fora da família, não mais só como progenitora, mas também como pessoa autônoma, como mulher. 

Começou a brincar cerâmica e logo pegou uns trabalhos de molduras e peças, encomendas estéticas. Mais um pouco e poderia tentar voltar a escrever as histórias de fantasia que tanto gosto lhe dava quando sonhou em ser escritora. Recolheu-se também na vaidade e fechava, todos os dias, três turnos de cuidados. Tinha a academia, a yoga, dançava jazz. Sempre em transpiração, ebulia prazeres e felicidades. 

Mas dedicação tanta era mesmo de cansar. Ainda que dividisse com o companheiro as tarefas com a prole e com o cuidar da limpeza da casa, como acordar, se exercitar, tratar dos rebentos, cozinhar, fazer mais treinos, mais trabalhos manuais, mais nenéns, banhos, danças, e ainda ser mulher do seu homem, ser mulher de si mesma e se esparramar no sofá com qualidade para ler com teima e zelo os livros que gostava tanto de deliciar? Foi se obrigando a dormir mais tarde e conseguindo se levantar mais cedo. Acordava com o marido ainda no escuro para preparar as mudas de roupa do dia, as calças elásticas para ginástica e alongamentos, jeans para levar as crias à escola ou ir ao banco, fazer as entregas de suas peças, calcinhas de namorar para mais tarde, pijama para madrugar sossegada quando todos já dormiam, atirada com as pernas para cima, cabelo molhado, cheirando a sabonete. Ia dormir já depois que os sinos retomavam à única badalada com a cabeça à mil. 

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Eram planos e projetos e a satisfação com seu corpo, sua elasticidade, a capacidade retomada de gostar de si e ter autonomia corporal para fazer o que achasse que devesse fazer. Ia dormir viva e não dormia. Passou a ficar acordada até um pouco mais tarde e acordava sempre cedo para retomar as atividades do dia. Sempre ativa demais. Sempre empolgada demais. Fazia cada vez mais coisas em velocidade tamanha que, certa manhã foi dormir e topou consigo mesma recém-acordada no corredor, rumo ao banho. Deu bom dia, viu que estava sorrindo e desejou-lhe sorte.

Amou-se e foi dormir feliz.

Jader Pires