“A gente até se paquerava, sabe” | Do Amor 158

O segredo era dar apenas duas batidas secas na porta e, sabendo se tratar do melhor amigo, já aparecia saltando no colo dele, abraçando-o com as duas pernas até que ele a levasse para dentro do apartamento. Assim o fez, carregando o corpo macio dela até o meio da sala, usando um vestido de flor, descalça, confortável para arrumar tudo de novo na casa nova, depois de seis longas semanas pulando de cama de hóspede em colchões infláveis desde que terminou o namoro. E ele foi lá para ajudá-la na arrumação. Acendeu a luminária que ficava ao lado do sofá e apagou a luz. "Bem melhor pra te ver só nos detalhes", brincou enquanto ela trazia vinho e duas taças lá da cozinha.

Ele voltou para a porta e trouxe do corredor uma caixa de tamanho mediano com uma meia dúzia de livros, um Kafka, três Raduan Nassar, a pequena coleção de Han Kang. Continha, no fundo, também, três discos. Fôrça Bruta do Jorge Ben, o segundo do Tim Maia, aquele de 1971, e o Qualquer Coisa, do Caetano, eleito para rodar no tocador de vinil. Tinha salvo todos os itens quando viu o fim do namoro da sua grande amiga. "Esses aqui não podiam ficar na sorte da escolha na hora da divisão", ele disse enquanto mostrava para ela passando as mãos como se trouxesse consigo grandes pedras preciosas. Sentaram-se no tapete da sala, ela com os pezinhos de lado, ele encostado nas pernas do sofá. Abriram a primeira parte da conversa para os recentes desabafos, ele falando um tiquinho do trabalho que estava estressante e deixando a maior parte do tempo para ela compartilhar as últimas do fim de namoro, as conversas saudáveis demais para o gosto dela com e ex, de como ela estava se sentindo com essas transformações, uma casa nova, outro bairro, a sensação de não ter mais com quem se deitar, mas as possibilidades de conhecer gente nova, experimentar brincadeiras que estavam adormecidas com a relação, passada. E ele contou umas graças com ela, dizendo que, se fosse com o jeito que ela paquera mal, que iria "demorar pra brincar de novo". Tapinhas nas pernas dele, sorrisinho de ambos, o silêncio, ele olhando pra cima, ela tomando outro gole do vinho.

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Passou, pelo menos na cabeça dele, e presumiu estar acontecendo na dela também, que ele sabia bem do que estava falando. Antes de serem os melhores amigos um do outro, ela chegou a ter interesse bobo nele, coisa de verão, sem ter obtido sucesso. Ele diz nunca ter desconfiado, e há a conhecida história que ele a abraçou no fim de uma festa, os dois bêbados, e que ela jura de pés juntos ter sentido que ele também queria, mas ele diz nem se lembrar qual foi este evento. Ela voltou a botar os olhos nele e disse que sabe, lá no fundo, que em algum momento ele já deve ter tido essa ideia. E, em silêncio, ele se recordou que não era bem uma festa, mas uma vez em que trabalharam juntos em um evento e, no último dia, comemoraram bebendo muito nos bastidores e, esperando o táxi que a empresa disponibilizou para levá-los embora, ele a abraçou e, mais ainda, tirou um beijo dela. Mas nunca perguntou se ela tinha esquecido ou se mergulhou esse detalhe no deslembrar da mente, para não ter que falar sobre o assunto.

Ela dava plena atenção no desencadear de pensamentos dele, ele reparava no jeito com que ela passava os dedos dos pés uns nos outros. Ela bebendo, ele babando. Ela, culpando o vinho, "oops", ele teso em seu lugar. 

A noite passando. A madrugada cansada. A manhã se aproximava.

E ficou por isso mesmo. Ela foi escovar os dentes para dormir, ele pensou em deitar na sala, mas foi embora assim que se levantou.

Esqueceram de desligar a vitrola, que ficou rodando o silêncio de um fim de disco.

Jader Pires