Maridos e amigos: tem amor pra todo mundo | Do Amor #159

Afogou-se nas correntezas por entre as coxas dela e levantou-se no sofá atrás de mais ar. Botaram outro capítulo da série que estavam maratonando, dava tempo de ver mais uma parte antes do jantar. Na tela, enquanto o mafioso gordão batia na pesada porta da amante, impondo já no toc-toc as suas vontades, ela bufou num solavanco, como se cuspisse uma saliva imaginária contra a cena e maldisse a atitude, explanou rapidamente sobre a covardia masculina de sair com outras pessoas para provar-se varão, quase um pedido compulsório de socorro, eles, sempre em busca de algo que nunca vai sanar. Enquanto, na televisão, o mafioso gordão transava com sua amante de quatro, o telefone dela pestaneou uma mensagem, acendendo a tela e depois escurecendo. Ela tomou o aparelho nas mãos, contra o peito, desbloqueou a tela e rodou com os olhinhos apertados de da esquerda para a direita e depois de cima para baixo. Botou a língua para fora, cacoete que a perseguia desde adolescente sempre que tinha que decidir algo, pressionou os dedos na parte inferior do touch screen e fechou o aplicativo. piscou muito pouco até o final da trama.

Na cozinha, enquanto ele pelejava no corte das cebolas, imergia-se concentrado em explicar a ela seus raciocínios. Tentava abrir uma discussão sobre o noticiário que berrava as notícias apocalípticas lá da sala, de como era conveniente, para eles, criticar o governo até a página dois, permitindo que o nefasto momento perpetuasse e, mais, tivesse ainda terreno para seguir após outubro de vinte e dois. Ela escutava com atenção enquanto espiava as cozinhas acesas dos apartamentos vizinhos pela janela, sem ligar muito se a vissem sem a parte de cima da roupa. lembrou-se da lista de compras e pediu para ele incluir, no celular, mais açúcar e maracujá para fazer suco com limão. estavam em sintonia, os dois, perguntas e respostas equilibradas, a completude do companheirismo em dia, um sossego pós sexo e série que lhes agradava por demais. Partiram, então, para os planos do final de semana, já que ele insistia que ambos deveriam tirar um tempo, ainda na mesma noite, para ver como andavam as reservas para ver a exposição d'Os Gêmeos na pinacoteca. Enquanto comiam, ele tomou o celular dela, já aberto tocando a playlist da noite, "calores caribenhos", e foi ver as melhores datas. Nisso, o aparelho tocou. Uma ligação com o nome de "Xandão". Ele passou para ela que atendeu, disse "uhum", depois outro "uhum", e depois um "tá". Ele foi levar os pratos para ficarem de molho na pia e dar privacidade para ela. Terminada a ligação, eles foram tomar banho. Pensaram onde poderiam almoçar e o que poderiam comer no sábado, bateram o martelo na certeza de levar um daqueles pães gostosos perto de casa para a mãe dela, e aí lembraram da exposição, da pinacoteca. Ele saiu antes debaixo do chuveiro, se enxugou rápido e tomou nas mãos o celular. "Olha, tem dia um e dia oito. Vamo nesse dia primeiro e matar logo essa?", ele questionou enquanto movia a barra de horários ainda disponíveis para reserva. E, enquanto ela deixava a água conduzir o shampoo cabelo abaixo, concordou que seria uma ótima, mas se arrependeu quando ele disse que marcaria então para irem às dezessete. Perguntou se tinha hora mais cedo, se podiam ir antes, porque às dezenove tinha marcado de trepar com o Xandão. "Como é que é?", escutou ele perguntar, ela ainda de olhos fechados por conta dos cabelos. Repetiu que sairia com o amigo para dar uma, argumentou que tinha já três meses que não se viam, ela e o Xandão. Ele pousou o celular sobre a tampa da privada, caminhou calmamente até o box embaçado e barulhento de água e abriu a porta. Encarou-a de olhos fulminantes, claramente com ímpeto de escutar cada letrinha que sairia da boca de sua mulher. E ordenou que ela repetisse o que tinha dito, porque não dava pra escutar direito com a água e o barulho pesado do shampoo contra o piso.

Após acordarem os horários, ele marcou para verem a exposição às onze, dava pra levar os pães para a sogra de manhã, ver as obras dos grafiteiros do Cambuci, almoçar tranquilos no Effendi, armênio delicioso que tinha ali perto do antigo DOPS, que o diabos os tenha, e deixar sua mulher sair com folga com o amigo dela. Pediu pra que ela não esquecesse de avisar o Xandão que ele tinha terminado o Atos Humanos, da Han Kang, e queria sentar no bar pra comentar o que achou.

Tem amor pra todo mundo.

Jader Pires