Entre amores e cabelo no ralo do banheiro | Do Amor #160
Amanheceu ainda desabituado com a suave pressão que o gorro fazia contra as têmporas, por isso ficava ajustando um pouco mais para a direita, um tanto mais à esquerda. Maldita hora, pensou, para ter de raspar os parcos fios que ainda lhe sobraram. O inverno finalmente tinha dado as caras, com geladas lambidas na careca dele quando mal tinha saído da cama. Optou, então, por abrigar o couro calvo numa touca amarela e fofa. Estava enfileirando na mesa da cozinha os utensílios para o café da manhã e aguardava seu companheiro vir do banho. Conseguia escutar a algazarra matinal que o outro morador do apartamento fazia espalhando água e espuma de shampoo por todo o banheiro, quase que secretamente se exibindo por ser ele o detentor de um rabo de cavalo deslumbrante. Enfim, seu Rapunzel chegou, cheirando a odor de rosas e ainda com a aura quente da ducha a noventa graus. Botou a cafeteira para funcionar e comentou que a lã na cabeça dele realmente iria lhe trazer proteção e aconchego nos dias mais frios. Escutou, em vez de uma concordância cotidiana, a primeira bronca do dia, o desejo do namorado que seu box não estivesse, de novo, um nojo por conta dos cabelos presos no ralo do banheiro. Seguiu comentando que o fastio da visão lhe doía nos ossos e defendeu não querer ter que, ele, retirar a imundície de lá. "Como é que você sabe que os cabelos são só meus?", indagou o outro enquanto tirava a toalha da cabeça e deixava as mechas ainda grudadas da umidade desabarem sobre suas costas, percebendo o olhar inquisidor do namorado. "Quer saber? Vou fazer uns ovos mexidos pra você gostar mais de mim", anunciou já na ponta dos pés ao mesmo tempo que trazia de uma mão para outra quatro ovos na cesta em cima da geladeira.
Àquela altura da manhã, comentaram, o sol poderia já estar mais entusiasmado, mas que, pelo jeito, o dia não esquentaria nem por decreto. Acomodando a cabeça dentro da touca mais uma vez, deixou o corpo relaxar na cadeira, quase como se derretesse só um pouquinho e, cruzando as pernas, deixando o chinelo na pontinha do dedo, uma sensualidade falida, mas que fazia ainda efeito no amor de anos, sondou se ele botaria uma roupa ou se fritaria os ovos peladão uma vez que, caso o namorado optasse por não se vestir, haveria ali um indício de que quem tiraria a roupa poucos minutos depois do café seria ele. "Cozinhar sem roupa, só se for de avental", ponderou o namorado, "não queremos nenhum pinto incendiado por aqui, queremos?" e seguiu comentando, enquanto quebrava os ovos e os mexia numa cumbuquinha, que havia lido um bom conto meses antes, de um escritorzinho que até que ele gostava, mas que falhara miseravelmente escrevendo a história de dois caras que combinavam de cozinhar sem roupa pra ver as partes balançando. "Vê-se que o cara nunca botou um ovo no fogo, ou nunca fritou nada com a rola de fora, porque ele ia ver rapidinho o que é bom pra tosse levando uns gotejo de azeite quente no pau, um escapado de pão na chapa ou naco minúsculo de bacon quente na pelinha delicadinha que ele deve ter". Riram da inocência heterossexual e comeram sem pressa, no silêncio agradável interrompido vez ou outra pelo longínquo escarcéu dos carros na avenida. Esquentavam as mãos na xícara de café puro e trocavam calores e carinhos nos braços e na bochecha. Parecia até que procuravam garantir que aquele instante tão aprazível era real, de verdade, e não um devaneio bobo, invencionices românticas de comercial de margarina.
Mas estavam num momento bom. O homem vestido chamou o outro homem, nu, para chegar mais perto e não ficar passando frio à toa. Beijaram um beijo com a satisfação que só quem tem a barriga cheia pode dar e levantaram-se para iniciar de vez o dia deles. Não sem antes um dar o tapa nas costas da mão do outro dizendo que, no próximo banho, teria sim de usar uma daquelas proteções plásticas pra não deixar cabelo cair no ralo. "nem fodendo", respondeu o outro.