A maturidade de sentir ciúmes da ex | Do Amor #161
Possuía um poder quase de herói das histórias em quadrinho para localizar fotos dela na linha do tempo da rede social. Entrava naquele perfil, que outrora fora meio abandonado, mas que andava bem ativo, para rever as fotografias que já havia escaneado diversas madrugadas e conferir novas poses dela, os olhares frescos dos lugares pelos quais ela passava e resolvia capturar com a câmera do celular. Pedaços de parede, recortes de azuis no céu, um close dos joelhos dela, os pés descalços borrados ao fundo, uma mecha de cabelo titubeando no ar rarefeito de um quarto fechado numa manhã de inverno. Ele assistia aos vídeos em modo bumerangue, farejava fragrâncias mentais, fragmentos de lembranças que aglutinavam com tolos achismos de como ela faria hoje, o que deveria pensar. Sabia que ela não gostava daquele velho asqueroso que não comprou as vacinas, mas nada muito além disso. Falaram-se umas tantas horas desde que se reencontraram depois de anos do término do namoro, mas foi uma retomada tímida, mais para lamber as feridas do passado, provar um para o outro que haviam sobrevivido saudáveis, que agora estavam mais equilibrados para conversas, que não precisavam encerrar mais aquela com xingamentos. estavam bem. Superados. Tinham suas novas relações, eram adultos sensatos e fazia um alívio para os dois saber que não havia ficado rusgas depois daquele tempão todo, que dava até para se seguirem, dava até para receber likes apartados um do outro de quando em quando e sorrirem.
Eram bons amigos distantes.
Tinha semanas inteiras em que ele nem conseguia recordar-se da existência dela, nem os algoritmos de seu Instagram. Daí, como num passe de mágica, surgia lá, ela, num reflexo de prédio do centro da cidade, num pôr do sol, a ponta da camiseta e o começo das coxas no sofá vermelho da casa que ele imaginava ser ela. Tinha uma pontinha de orgulho na maneira com que os olhos dele se mexiam, buscando referências, resquícios que poderiam vir desde a época que foram namorados, um pôster, um nome de banda abaixo da gola careca. Aliás, soltava também risinhos de escárnio que, quando percebidos, fazia de tudo para se recriminar. Isso porque via graça em ela ainda escutar algumas faixas de música brega, uns rocks clássicos que eram, a cada dia que passava, mais obsoletos que nunca. Ele também escutava canções de rock'n roll, mas era só sentir aquela vergonhazinha por ela, de imaginar ela meio paradinha no tempo, e ele botava um disco de hip-hop, ou um samba instrumental para se colocar em uma aura de apreço pela arte, um apuro, quase quarenta anos já era para se ter mais maturidade nos ouvidos, e não ficar naquela cafonice de The Doors o Foo Fighters. Colocava Almir Guineto no Spotify, Hamilton de Holanda. Colocava Kendrick Lamar, Blood Orange, e percebia seu corpo derreter no tapete com a plena certeza de que sabia das coisas. De todas elas. Do mundo todinho. Achava bom que tivesse crescido, se aprimorado. Sentia-se lapidado. E voltava a procurar minúcias nas fotos dela, gostava do olhar que ela tinha para apresentar a cidade, conceitualizar sua própria figura. Mordia e assoprava sua ex-namorada sem que ela tivesse a mais vaga ideia disso. E gostava de imaginar que ela fazia o mesmo.
Certa noite, enquanto caçava detalhes numa foto de #tbt em que ela estava em viagem na Califórnia, um comentário o chamou atenção, bem abaixo de um recadinho do atual namorado dela. "Muitas lembranças" era a opinião escrita, já tinha duas horas, e a resposta de uns minutos dela com apenas uma única letra: "Ô". Ali. Pra todo mundo ver. Enquanto apagava a luminária no canto da sala e acendia a luz principal, para enxergar melhor a situação, perguntava-se quem poderia ser aquele cara do comentário, era uma conta privada, tudo o que ele sabia naquele recorte era se tratar de um loiro de chapéu. olhando fixamente para onde apontava a lente quando foi fotografado. Olhando diretamente para ele naquele instante. O calor que subiu-lhe pela nuca rapidamente virou um esfriamento incômodo. Desligou o celular, tratou de botar uma blusa de zíper e foi até a cozinha tomar água. Lá, com o copo na mão, mantinha a atenção naquela comunicação íntima demais para o gosto dele. Quem era aquele cara? Quem ele pensava que era pra ter boas lembranças? Com ela? Com a ex dele? Claro, ela amar o novo namorado era algo a ser comemorado, desejava, ou achava que desejava até então só o melhor para ela. Mas daí ficar de papinho com um estranho, para ele, como se ela tivesse vivido uma boa vida entre o término, uma década atrás, e agora, adulta e vivendo uma outra relação estável, aí era demais para a cabeça dele. Não podia aceitar que ela passou esses anos todos afastada, com paquerinhas na Califórnia ou em qualquer outro lugar. Quem ela pensava que era?
Não pegou mais o celular. Resgatou logo um CD do Dave Brubeck, daqueles que faziam parte de uma coleção de jazz de jornal, e botou no computador para escutar. Precisava se sentir maduro de novo.