Ele morreu de amor e ela pra pagar as contas em dia | Do Amor #162
E quando o padre pediu, todos se levantaram. Não havia mais que vinte pessoas na capelinha, aberta exclusivamente para o adeus ao Teobaldo, devoto de Santa Rita de Cássia e frequentador assíduo das missas de lá. Foi-se novo, ainda aos cinquenta e oito, vítima de um ataque fulminante do coração ao sair do banho. Caiu ao lado do vaso e nunca mais se levantou.
O bairro ficou de luto e alguns foram prestar as últimas homenagens. Pouco antes do enterro, os que restaram lá estavam de pé a pedido do sacerdote para as palavras finais.
Todos menos a dona Odete, viúva do Teobaldo, que não se mexeu após a solicitação. Já de idade avançada, era conhecida pelos maus tratos com as pessoas, uma caduca que ficava de olho na rua pra ver se alguém cometeria infrações, quem poderia atentar contra a moral e os bons costumes. Gritava com as crianças que jogavam bola perto do seu portão e reclamava que havia acabado de mandar pintar o muro, quando na verdade a parede estava há anos sem uma demão. Na casa dela, a luz só se acendia depois das oito da noite e nem um minuto antes “porque eu não sou dada a desperdícios”, ela repetia para o esposo vinte anos mais novo e primo de primeiro grau. Dia sim e dia não ela o pegava pela mão e o levava até o banheiro, para demonstrar a maneira correta e mais econômica de puxar o cordãozinho da descarga, porque - dizia ela - ele fazia descer água demais à toa. Uma vez, uma vizinha escutou do Teobaldo que ela até colocava uma quantidade determinada de biscoitos no pote de cerâmica toda semana e escondia o resto, e que de vez em quando ela chegava a contar quantas vezes ele mastigava antes de engolir a janta para falar que ele comia rápido demais, não porque fazia mal, mas porque, assim, ele iria querer repetir o prato.
Foi essa mesma vizinha que ouviu a dona Odete bufar ao saber que seria de bom tom pagar um cafezinho para o moço que abriria a sepultura da família antes do enterro do marido. Ela havia acompanhado a enlutada nos trâmites burocráticos da documentação do óbito e da compra do caixão, momento em que a velha debateu e pechinchou o preço do féretro que levaria Teobaldo “ao quinto dos infernos”, a vizinha percebeu dona Odete sussurrar olhando para baixo antes de sair da loja funerária.
Sentada ao lado da viúva de Teobaldo, essa vizinha, ao se levantar juntamente com todos dentro da capela, temendo por mais uma gafe de dona Odete, cutucou a senhorinha para que se juntasse ao grupo de eretos, quando a velha despencou para o lado já morta. Molinha molinha, morreu antes de enterrarem o esposo.
Quando ambos já estavam a sete palmos, ela se lembrou que, enquanto estavam dentro do táxi, seguindo o caminho entre a funerária e a capela, dona Odete falava baixinho consigo mesma, entre resmungos e contas que fazia nos dedos. Em dado momento, quase na entrada da igrejinha, ela disse num tom mais alto: “a não ser que… se formos em dois…”.
Ninguém até hoje tira da cabeça da vizinha que a velha morreu para enterrar dois no preço de um só.