Como ela deve ser tratada num encontro | Do Amor #188

A Meire adentrou no quarto com sua costumeira postura atarantada. Nem mesmo disfarçava a pressa devido ao atraso do ônibus que a levava ao apartamento da patroa, que àquela altura da manhã, ainda na cama, mas já bem desperta, não ligava a mínima. Toda a importância do dia estava focada no grande encontro que, enfim, havia chegado. Tomou as pílulas para arritmia que o Dr. Walter lhe receitou, só por garantia, e seguiu com o já desenhado ritual de tranquilidade e beleza. Calçou os chinelinhos felpudos, dirigiu-se até a penteadeira e desembaraçou os ralos cabelos brancos com seu pente âmbar, presente da filha mais velha, comprado em uma viagem e que lhe lembrou muito o que a bisavó usava numa famosa foto que decora a sala da mãe. Maquiou-se desapressada, aguardava o cessar das pequenas tremedeiras nas mãos para agir e analisava  qualidade do que estava fazendo quando seus dedos voltavam a ir e vir em pequenas ondulações involuntárias.

Ao passar pelo velho espelho do quarto, logo depois de se perfumar de alfazema, sorriu um sorriso deleitoso com sua imagem ajustada da forma como pensava dever ser para o evento. Dali, daquele ponto logo ao lado da janela, a luz que vinha da rua transformava sua pele em ouro, uma pequenina jóia. O vestido de flores grandes estampadas que a lembraram da própria infância lhe parecia impecável, quase não precisava de ajustes feitos com as mãos para ultimar qualquer amassadinho, ainda que discreto. A Meire a mediu de cima abaixo com olhos apetitosos, elogiando os cuidados, as escolhas. Recolheu os chinelos retirados e auxiliou-a com o calçar das sandálias, mesmo sob protestos da cuidadora que a alertava para os dedos de fora, para o frio que poderia passar com eles, mesmo que pintadinhos, desprotegidos. Mas ele sempre gostou de brincar com os pés dela. Os dedos de fora eram inegociáveis, mesmo no outono.

Preferiu não desjejuar. Seu estômago estava cheio de tantas borboletas que lá voavam enquanto ela, de braços dados com a cuidadora, atravessava a sala e aguardava a chegada do elevador. Na descida, perguntava-se o que faria caso ele não aparecesse, numa possível hipótese de algum contratempo mudar seus planos, como os ventos mudavam a direção das embarcações. Sua cara enrubescer com a vergonha de levar cano, de passar minutos que certamente se converteriam em horas de infrutífera espera. Seria, sim, teimosa em imaginar que ele apareceria até que a azeda verdade lhe tomasse a língua, a garganta e descesse goela abaixo acabando com sua manhã, com sua semana, diabos, o mês todinho seria uma chateação. Montava todos esses cenários enquanto amassava com as mãos a embalagem dos biscoitos que ele tanto gostava e que, por isso, ela sempre pedia para comprá-los e sempre os levava para os seus compromissos com ele. Lá embaixo, no pátio do prédio, somente ela e sua ajudante dividiram espaço com os bem-te-vis que se aventuravam no gramado. Ela se desvencilhou da cuidadora, recostou-se ao lado de um dos pilares perto da entrada e deu uma boa olhada em volta. Murmurejou um desejo contido que só ela mesmo escutou e sentou-se no banco para aguardá-lo, o mesmo banco que se sentava sempre. E então escutou. O tec tec tec tec. Era o som do seu amor chegando. O cachorro que passou correndo a assustou, mas logo que entendeu que era ele vindo, com sua bengala reluzente já fazendo reflexos no chão do corredor, fechou os olhos, um tanto trêmula em antecipação, e esperou, até que sentiu a língua úmida em seus dedos dos pés, e deixou escapar um riso alto. Era ele, finalmente. Viu, quando se deu permissão de olhá-lo de cima para baixo, o chapéu alvo em sua cabeça, inclinado para que sua boca decorada com um maciço bigode pudesse alcançar seus metatarsos, cada falanginha que conseguisse encontrar. Deixou-os embebidos, ergueu vagarosas bitocas até o peito dos pés e finalmente olhou para ela de volta.

Se beijaram e subiram para tomar café.

* * *

Obs.: este texto é uma releitura do conto escrito pela amiga e aluna Margarida Zanelato, que fez um conto para o meu curso de escrita que relatava a história de uma senhora que estava ansiosa para o encontro que teria, pela manhã, com o cachorro do prédio que ela amava. Vi, nesse ínterim, um texto que, com a virada para outro lado, se transformaria em um perfeito Do Amor. E cá está. Claro, o reescrevi de cabeça, pegando coisas minhas e vestindo por cima do mote da história dela. Tem duas frases no meio do texto (vamos ver se ela se recordará) que são exatas frases escritas por ela. Também preservei o nome da cuidadora, Meire, e do Dr. Walter, por simples motivos de homenagem. Todo o resto, inclusive o final, foi refeito. <3

Jader Pires