Bom, seria bom morrer ao seu lado | Do Amor #190
"Só me leva daqui, vai, arranca!". Então eu engatei a primeira marcha e demos no pé. Ele só pedia, repetidamente e com as mãos entre os cabelos, para que eu dirigisse, que vagássemos a esmo, quem sabe passássemos em frente aos bares onde nossos amigos riam e se divertiam, vivos e bem. Mas ele não queria que eu parasse, neste ponto ele era bem enfático. Era para eu continuar, devíamos nos obstinar somente à próxima esquina, o próximo quarteirão. Eu perguntava se a gente não poderia dar um tempo, estacionar na pracinha ou em frente à casa dele, mas ele abriu todos os vidros do carro e assegurou que a rua agora era a sua casa, que ele não tinha mais um lar, pelo menos não depois de cuspir todas aquelas afrontas que ele me relatou para seus pais. Ele tinha uma mãe perturbada pela vidinha morosa de dona de casa. Ela tomava dezessete remédios todos os dias, para dormir e para acordar, para ter fome e para sanar as dores estomacais, para fazer diminuir os gritos que ela dava em fortes espasmos de desespero que geralmente resultava em algum prato quebrado ou toneladas de roupas atiradas pela janela. O pai não estava nunca, viajava três semanas seguidas para visitar as filiais da empresa que trabalhava e, nos dias em que estava de volta na cidade, se enfurnava em seu escritório para deixar prontos todos os relatórios que tinha de apresentar aos sócios no final do mês. Quando estacionava o carro na garagem, anunciava sua chegada aos berros, comia a comida gelada de pé na pia da cozinha e dormia no sofá. "Aquela é a casa deles, não a minha", ele ficava falando em voz baixa nos momentos em que a euforia dava um tempo. Eram pequeninos fragmentos de uma graciosidade inebriante. Como eu tava perdidinho de amores. Mas logo se enchia outra vez e ordenava que eu acelerasse, que eu o beijasse a boca enquanto dirigia, justamente nos cruzamentos que a gente passava, quase que fazendo uma silenciosa aposta com o destino, tapando meus olhos e espalhando sua língua gostosa por cima da minha.
Os olhos gotejantes dele, que mais pareciam os de um cachorro triste sem os donos, brilhavam a cada neon de café ou botequim que aparecia. Ele estava sugando toda a vida feliz pelos olhos, fumando um cigarro atrás do outro com metade do corpo para fora do carro. Eu, então, o trazia de volta puxando-o pelos fundilhos da calça e tentava manter sua atenção dentro do carro, na racionalidade da nossa conversa. Comentei que ele ficava lindo naquela jaqueta acobreada, quase vermelha, de uma lona meio encerada. Ele passava as mãos como se acarinhasse um filhote. Seu pai lhe trouxe depois de uma de suas viagens. Ele me confidenciou que o plano era me encontrar com uma camisa de gola e mangas compridas que eu também elogiava muito, uma azul marinho listrada de branco. Mas ele preferiu o casaco e eu entendi tudo sem maiores detalhes. A gente corria cada vez mais rápido e de mãos dadas, o topete dele brigando contra o vento demasiado e cortante. "Eu não ligo", ele repetia aos berros, "eu não ligo", me apertava os dedos contra os seus e dava mais um trago. Eu só queria guardar aquela beleza toda numa espécie de pote, num aquário que ficaria na sala da minha casa, de luz acesa todo o tempo. Eu tirava selfies nossas, desfocadas, vários borrões na noite escura com manchas fluorescentes dos faróis e placas de padarias ainda abertas.
Ele não tinha fome nem sede, ficava de ceninhas quando eu ameaçava pedir para parar um pouquinho e tomar alguma coisa, fechava a cara, cruzava os braços. Seus pedidos eram só os de eu acelerar mais, virar na esquina adiante, pegar a avenida principal. E seguia me atrapalhando, botando as botas sujas no meu colo, me fazendo carinho na nuca, pegando no meu pau. O carro balançava nas faixas vazias, os pneus lambiam os cantinhos de meio-fio quando eu virava daquelas formas impetuosas. "A gente vai morrer assim, eu comentava meio que tentando dizer a ele, mesmo com toda a ironia, que aquilo já estava ficando perigoso. "Bom, morrer ao seu lado é o que eu poderia chamar de privilégio". E sua cara se fechou séria, olhando para mim e depois para frente, avistando os pedaços de rua se aproximando de nós dois. "Um busão, enorme, um caminhão desses que trabalham de madrugada, não me importa". E ele me beijou, Outra vez. O melhor beijo que eu já ganhei naquela vida. Ele fechou os olhos e eu sabia que precisava apenas fazer o mesmo. Fechar os olhos. A luz não se apagaria jamais.