Não deixe alguém morrer sem saber do seu amor | Do Amor #176
Avançava galopante pelo corredor sem fim imaginando ser parado a qualquer momento por um segurança, que certamente voaria em seu pescoço impedindo o avanço daquela trajetória desvairada, vertiginosa. Devia ter se declarado antes, óbvio, houveram inúmeras despedidas antes do derradeiro tchau, ela iria para Barcelona, conheceria lá um Javier Bardem e multiplicaria seus genes com aquele touro de Picasso assim que ele a inseminasse com todo aquele sabor latino.
Demorou também para descobrir-se apaixonado por ela. Foram anos entre a primeira semana da faculdade, ao sentarem-se um ao lado do outro na aula de ética um até a festa de despedida no apartamento dela, com balõezinhos de letras prateadas dizendo "¡Bienvenida!" de uma ponta da sala até a outra. Lá, enquanto ela dançava abraçada com todo mundo, bateu nele uma coceira nas mãos, uma necessidade de tocar as costas nuas dela, de mordê-la com todo mundo olhando, gritar eu te amo de um jeito tão intenso que a polícia subiria para saber se estava tudo bem. Mas calou-se o resto da noite, enfiado em um dos sofás observando cada micromovimento dela, meio que tentando guardar na cabeça cada pormenor de suas ações, o que estava por trás de cada sorriso lindo, de qualquer mexida mais provocativa das ancas, qualquer giro escorregadio dos pés descalços no sinteco do apartamento. Daí, foi um pulo para remontar toda a história que tiveram juntos, os trabalhos que eram um porre e os porres nos trabalhos. A risada ordinária que ela dava, quase caindo para trás, quando ele contava uma boa piada, os cabelos dela nos joelhos dele quando ela se deitava em seu colo para uma soneca entra aulas. O desassossego durou meses, entre a positiva da Universitat de Barcelona para seu mestrado e a ida de fato para a Catalunha. Nesse tempo, desfrutou deste amor, sem nunca abrir para sua amiga seus sentimentos. Levou a querença por baixo dos panos, no tocar das mãos dela no rosto dele, nas ternurinhas dela no tratar das plantas da casa dele. "Não me vai deixar morrer as alocasias, hein?", ela dizia numa voz que chegava escorria nos ouvidos dele.
Seria, em sua cabeça, quase um atentado dar com a língua nos dentes, declarar-se apaixonado com tantos planos dela já definidos. Se ela aceita de volta e também se coloca enamorada, poderia arruinar com o incrível futuro que ela estava para construir. No caso de negativa, de ela não o amar de volta, provocaria um desgaste no apreço de duas pessoas muito amigas. Ela e ele. Calou-se, então, até o final.
E passou. O ímpeto se desfez, metamorfoseou-se carinho. Levou-a ao aeroporto, retirou as malas do porta-malas do carro e deram um abraço encaixado, confortável em sua longa duração. Só que, quando não podia mais enxergar a figura dela, bateu nele um tremor nas mãos e nas pernas, a aflição do equívoco, a decepção do remorso. Correu desembestado e sem olhar para trás. Desviou de pessoas, desceu escadas rolantes aos solavancos e subiu as escadas rolantes de dois em dois degraus. Avistou o corredor comprido, imenso, e disparou. Não foi detido por nenhum funcionário, cogitou ser rotina pessoas atarantadas num aeroporto, detectou o conjunto que formavam as malas dela e a agarrou. Cuspiu as palavras ainda sem recuperar o ar. As frases saíam entrecortadas de sua boca, as mãos se sustentando nos joelhos. Mas disse tudo que sentia precisar dizer. Que um dia a amou, Que teve um recorte na convivência deles dois em que ele sentiu por ela toda a idolatria dos amantes. Confessou ter imaginado ambos como um casal, casando na igreja, comendo café da manhã brega e boiando na piscina de algum resort no Caribe. E disse também, antes que ela tivesse a chance de retrucá-lo, que tudo já tinha passado, que não necessitava de respostas ou confirmações. "Eu só não queria que você morresse essa vida sem saber que alguém se apaixonou por você".
Abraços, conversas, o carro dele guinchado na entrada do aeroporto e a alma descansada. Dos dois. Ele por contar. Ela por saber.
A vida é muito curta pra gente se declarar só amanhã.