Subiu no telhado da escola para dar um bem-te-vi para sua garota | Do Amor #177

Ela tinha os olhinhos muito unidos, apertados perto do nariz, e aquela estrutura lhe emprestava um ar de atenção plena, uma sentinela perambulando pelos corredores da escola atrás de infratores. E aquele estado de alerta que ela impunha mexia com ele. Gostava de garotas mandonas, receber palavras de ordem e deselogios o fazia tremer e caminhar de cabeça baixa e cara quente. Em casa, sozinho na parte de cima da beliche, ele pensava naquela menina e nos desejos que ainda haveria de fazer cumprir-se com ela. Sim, o garoto estava perdidamente apaixonado pela assistente da orientadora da escola.

As responsabilidades da garota passavam por simples instâncias de coletar dados e informações caso algo de não usual ocorresse, uma discussão, uma briga de criança, caberia à ela procurar e passar os nomes, em que turma estudavam. Mas a pequena tirana fazia daquele pequeno poder um vigiar e punir, acumulava dossiês mentais, ameaçava quem atravessava seu caminho com passos mais largos, fazia o ruído das risadas e cantorias diminuir só com a encarada. O moleque, vendo todo aquele controle que emanava dela, se derretia pelos cantos da escola. Criava diálogos em sua cabeça, com ela, sem ela saber, em que tecia elogios aos sapatos sempre tão limpos dela, e escutava, não ela dizer, mas a versão que ele tinha dela em sua cabeça, como resposta que todas as manhãs, antes de ir às aulas, ela esfregava um paninho úmido para deixar a lateral das solas sempre impecáveis. Em sua fantasia, ele a abraçava e recebia em troca broncas, uma repreensão direta ao fato de que era muito burro da parte dele amassar o coletinho amarelo e azul que ela vestia, que se ele o fizesse novamente, ela enviaria a peça para que ele passasse e engomasse. Ele cogitava qual entoação feroz ela usaria para maldizê-lo e o ar lhe faltava nos pulmões, uma tontura que até lhe fazia precisar se sentar.

Certa manhã, os rugidos dela chegaram ao longe em seus ouvidos e, aceso, correu para ver o que estava se passando. Era uma situação inusitada, os meninos da quadra estavam amontoados ao lado de uma coluna, agitando-se em berros, mais parecidos com antepassados longínquos que faziam festa em volta da fogueira. No alto da grossa pilastra de metal, um pássaro assustado. Ele então observou todo o trabalho da menina-assistente, empurrando a parcela mais motivada para as beiradas até que conseguiu penetrar no centro do furdunço. Bradou advertências, repetiu os nomes dos envolvidos em voz alta para que soubessem estar marcados. Fez com que o grupo se afastasse, parecendo cães de rabo entre as pernas, cabisbaixos. Suas bochechas estavam em chamas, fingiu comprar pão de batata na cantina para escutá-la melhor, dizendo que era uma maldade sem tamanho mexer com o bichinho, que se tratava de um bem te vi assustado, que a mãe dela que lhe apresentou a pequena ave quando passeavam no parque. Fez uma pequena explanação sobre os hábitos daquela espécie, a etimologia do nome dele, cortando em sílabas o-no-ma-to-pe-ia para que as outras meninas entendessem. Aqueles dois olhos diminutos e estáticos eram um deleite, a quentura já não lhe era mais confortável, a imaginação já não cabia mais. Se fosse devagarzinho, e essa frase já era parte do pensamento dele, poderia capturar o passarinho nas mãos e dar de presente para sua amada. Ela o prenderia em uma gaiola, o animalzinho, e daria ordens a ele, de quando cantar, da hora certa para dormir. Cuidaria do Pituã, nome Tupi que ele ouviu ela dizer enquanto dava a repentina aula para as amigas, como se deve.

Escalou o pilar da quadra pela escadinha que serve para os funcionários da manutenção terem acesso ao telhado a cada final de semestre. Foi tranquilo e foi preciso. Agarrou o passarinho e desceu com ele em uma das mãos no formato de concha, para dar maior conforto ao pequenino. Era a declaração perfeita que martelava em loop na descida, "ele é seu, e eu também", diria ajoelhado e pronto para receber as determinações dela, em qual caixinha furada deixaria o pet deles, qual nome daria, qual trajeto deveriam fazer até chegar à casa dela. Pousou em terra firme e desembestou na direção do seu amor. Dava pernadas espaçadas na tentativa de chegar o mais rápido possível na rodinha de garotas, o rosto pelando, deu com os olhos nos olhos espremidos dela, o indicador fazendo movimentos curtos e rápidos apontando para o bem-te-vi. o tropeço tirou-lhe a clareza da visão da feição assombrada dela. Formou-se, no lugar, um borrão das cores do uniforme da escola amarelo e azul com o acinzentado do chão. Não chegou a se machucar, logo, estranhou o berreiro que as meninas deram, a maneira com que correram para o mais longe possível dele, como se fosse algum bandido, um assassino. E então, remontando o que estava fazendo antes de cair, conseguiu sentir a pasta em seu peito, a mistura disforme de carne e pena.

O depoimento dela levou quarenta e cinco minutos. Esclareceu como ele se utilizou da escadinha para se pendurar, que foi premeditada sua atitude de capturar o pássaro, acrescentou como ele tinha uma risada canhestra e sinistra antes de saltar com o coitadinho sob a barriga com o intuito de cometer aquela atrocidade em frente às garotas do colégio. Ele não negou qualquer vírgula dos dizeres dela. Ficou em silêncio, de cabeça baixa, mirando a mancha escura e ressecada no uniforme. Quando a sentença foi dada, duas semanas de suspensão, a menina de olhos comprimidos pediu três semanas, mas não foi atendida.

Ele matou uma semana extra de aula só para obedecê-la.

Jader Pires