O amor que a gente tem nas ruas, para todo mundo ver | Do Amor #181
Ela emprestava, sempre que podia, sua muleta esquerda para ele. Tinha seis semanas que ele andava manco, com uma queimadura feia mastigando sua canela dia após dia. Foi abrasado com um escapamento de moto, foi falar com o entregador pra ajudá-lo, apontar onde ficava o prédio que o moço da comida tava atrás. Chegou perto demais e deu com a perna no escape pelando. Daí ficava mais fácil, na pressa, manquejar com o amparo de ferro da esposa. Não tinha muito para passar na ferida, ganhou uma pomada do dono da farmácia, mas não avançou com o tratamento. Deixava respirar quando parado e, se fosse transitar para pedir algo, fazer alguma ajuda na tentativa de receber um troco por dó ou caridade, enfaixava com qualquer pano o machucado e saía pulando com a muleta emprestada.
Sua companheira já tinha dificuldade de locomoção havia anos. Sua perna direita era torta, retorcida, fruto de um atropelamento. Usou gaiola externa, fez três cirurgias no sistema público de saúde. Mas a condição de viver na rua, a falta de acompanhamento próximo, a desistência de tentativas deixou o membro dela parecendo um pedaço de pano torcido, sem esticar de volta. Andava na ponta desse pé, sempre de chinelo. Por isso, por se julgar mais acostumada e apta, ela dava um de seus apoios para que ele se virasse. Ai dele se sujasse ou danificasse a peça, ouviria desaforos três dias e três noites, debaixo da marquise do banco Itaú. Era lá que eles viviam. Um colchão de casal, uns travesseiros, três sacolas grandes de roupas que religiosamente eram lavadas às segundas, na torneira que ficava do lado de fora da agência. Depois, ele repousava as peças nos arbustos do jardim para que secassem ao sol. Ela sorria nesse processo, era uma graça vê-lo esticar as camisetas dela com esmero, para que não cheirasse depois. Quando ele voltava, ela dava beijos em sua testa, o puxava para perto, demonstrava seus afetos com as mãos no rosto dele, no torso dele. Dos amores involuntariamente públicos.
No dia que ele quase foi levado pela polícia, ela gritou todo o grito que permitiu seu estômago, urros guturais contra os porcos que tumultuavam a avenida naquela tarde. Apareceram a pedido do gerente do supermercado da esquina. Cansado de lidar com as sete crianças que apinhavam a entrada, acompanhados da mãe da avó que vinham de graça no ônibus para tentar levar para casa leite e óleos, chamou o um nove zero e a viatura chegou saltitante, parecendo ansiar pelo momento. Gritaram com a molecada, espantaram a meninada com cassetete, conversaram com a mãe e a avó, exigiram que ficassem do outro lado da rua. As meninas diziam saber seus direitos, que ninguém ali poderia impedi-las de ir e vir, de mesmo entrar no supermercado para analisar preços, comparar valores, fazer suas escolhas. Nem de pedir, de conversar com outros clientes. Mas os homens fardados, aqueles, eram especialistas em desobedecer a lei. Gritaram, varriam com os coturnos quem estivesse no chão, feito dia preguiçoso em que a gente empurra a sujeira da calçada com a ponta do pé para a sarjeta. Ao ver o furdunço, ele pegou a muleta da parceira e foi ter com os policiais, explicar que morava ali e sempre as via, que sabia da índole delas, que as meninas só pediam na boa, que não assaltavam, que nunca havia visto um arrastão delas. Gesticulava o tamanhozinho delas, falava com a mansidão que talvez mostrasse para eles a delicadeza por trás de cada rostinho bruto que eles viam. Mas a candura no rosto do mendigo chegava como afronta aos homens endiabrados. A sede deles era por ordem e não delicadeza. A subserviência era a meta. Atiraram longe o pau que lhe servia de amparo debaixo do sovaco, deram solavancos para que ele fosse para trás. Tentaram desmontar a casa deles debaixo da marquise da agência bancária, mesmo com pedidos contrários dos funcionários, das pessoas que almoçavam sempre no restaurante ao lado, os cozinheiros. A mulher dele chegou cega à situação, puxando ele com força, buscando desvencilhá-lo das mãos dos policiais. Gritava, mordia o ar, a máscara de pano que escorregara para o queixo fazia movimentos intensos para frente e para trás com o ar quente que ela expelia. Os homens juraram voltar. Aquela noite, eles dois passariam em claro, tomando pequenos sustos a cada farol que despontava do fim da avenida. Mas permaneceram ali e permaneceram juntos. Ele segurando as mãos dela. Ela trocando a faixa empapada da queimadura dele. Dobrando roupas, afofando travesseiros. Comeram. Escutaram um pouco de música, baixinho para não fazer barulho na rua silenciosa, o radiozinho a pilhas que ele tinha ganhado de um vizinho quando disse que a última terça havia sido seu aniversário.
No dia seguinte ela passou dando gelos nele, falando de modo ríspido. Era a maneira que julgava mais eficaz de fazer ele entender que tinha vacilado, mesmo fazendo o certo. Mais ainda, que geralmente quando eles tentavam fazer o certo é que tomavam mais ainda na tarraqueta. Não havia civilidade com aqueles que ontem tentaram levá-lo no camburão. Ele não retrucou a rapidez dela. Dobrou direitinho as roupinhas deles. deixou todo o entorno da casa deles bem varrido, bem limpinho. Não pediu emprestada a muleta. Quando se sentiu mais segura, ela se sentou com as costas apoiadas no peito dele. Ele fez um cafuné pacato na nuca dela.
Trocaram uma bitoquinha discreta.