O melhor primeiro encontro é que não é um encontro | Do Amor #182

"Tá indo pra onde?", a voz esganiçada dele era de quem já tinha passado tempo demais sob o ar condicionado do escritório. Subindo para a estação de metrô juntos, ela foi explicando para ele que teria de esperar pelo ex-marido perto de onde eles moraram juntos. Ela estava para entregar uma documentação assinada para que ele pudesse avançar com a venda do apartamento que era deles. Enquanto ela buscava palavras e termos para expor-lhe o assunto sem ser esquiva e nem pessoal demais, ele ia trocando de ombro a alça da mochila para que o ângulo evidenciasse que seus olhos estavam atenciosos no que ela dizia. Era importante para ele que ela soubesse que ele estava, de fato, prestando atenção, e não só perguntando para onde ela iria só por perguntar. 

Queria demonstrar toda a sua simpatia pelo fato e disse que a acompanharia. Não tinha quem o esperasse em casa, tomar alguma coisa numa quinta, mesmo com o borrifo fino que se deitava por sobre a cidade. Tomaram o trem, desceram cinco estações adiante, combinados estarem, ambos, terminantemente proibidos de falar qualquer "a" sobre o trabalho. Ela dizia, sobre o encontro que teria, não ser algo preocupante ou aborrecedor. Seu divórcio já tinha completado um par de anos, afirmava ter uma boa estima pelo antigo companheiro. A troca de papéis em local público era mera facilitação geográfica, aquela estação era caminho de ambos. Era passar para ele os registros, perguntar do joelho dele, se continuava afetado pelo futebol de society, e ir para casa. Optaram, então, de sentar no bar, ele lhe faria companhia até meia hora antes de ela ter de partir. Escolheram uma mesa do lado de fora, numa área coberta, para que a garoa não atrapalhasse o começo de noite. Ela pediu algo com gim, ele escolheu uma cerveja. Para não deixá-la com a cabeça no evento seguinte, ele tratou de iniciar o interrogatório perguntando se ela já tinha ouvido direito o novo disco do Tim Bernardes e concordou quando ela disse que tava gostando, mesmo com menos piano e mais viola, concordaram que seguia com o sarrafo lá no alto, o menino Tim. Ela ziguezagueou os olhos sobre ele, de cima para baixo, comentando, a julgar pela altura, pela estrutura do corpo, que ele poderia usar algumas roupas parecidas com a do cantor, talvez até deixar brotar em cima da boca um bigode setentista como o dele. Enquanto ele ria do deboche, ela subia com a ponta do dedo apontando calçados e calça, barriga e peito, os lábios dele que avançaram sobre o indicador com dentes ferozes a mostra, um alerta perigoso de que a morderia se persistisse no assunto de mudar seus trajes. Ele mostrou a foto que tirou do lambe-lambe "a fome voltou" e encontraram pano para muita manga, lamentaram a aberração que estava acontecendo com o país deles naqueles tempos sombrios, torceram pelo possível varal de fascistas que bem que podia se fazer quando tudo aquilo acabasse. Ele pegou na mão dela e lhe assegurou que tudo aquilo haveria de passar. Pediram outras duas rodadas de bebidas, ele na long neck, ela no destilado com alecrim e zimbro.

No telefone, o ex dela deixou um áudio dizendo que se atrasaria. Decidiram, em comum acordo, esticar o papo no restaurante da esquina. Pediram massa, dividiram os pratos, ela se enfiando por entre os braços dele para surrupiar mais azeitonas pretas no prato dele. Enquanto se alimentavam, ela confidenciava fazendo carinho com os dedos da mão no guardanapo de pano que se sentia orgulhosa da relação após-término, da maturidade com que tinham lidado, da amizade à média distância, mas sólida, entre os dois. Ele concordava fazendo sinais afirmativos com a cabeça de quando em quando, dividiu com ela ter lido um conto na internet, uma vez, sobre um casal que se encontrava quatro anos depois de terem terminado e tinham, juntos, uma tarde muito aprazível. Concordaram em gênero, em número e também em grau da pequena satisfação de manter a relação com quem, um dia, lhe fora tão importante, tão próximo, tão bem quisto. "Você deve ser uma ótima ex", ele despejou na mesa. "Tá terminando comigo?", ela rebateu e, com olhos de cigana, segundo ele, que nem os que deveriam ser os da Capitu, disse que ele não iria querer tê-la como ex porque, se ele se apaixonasse, nunca mais desapaixonaria.

O puxão que ele deu nela, a chupada que ela deu na língua dele. Dois adolescentes não fariam uma cena melhor nos fundos do restaurante. A coxa dele pressionando as pernas dela, a mochila perdida no chão, o telefone dela vibrando. Era o ex. Ela mandou um áudio tremido pedindo para que remarcassem. Que ela estava num encontro.

"Pera, isso é um encontro?", se indagaram por entre os beiços. Não era. Mas tinha virado.

Jader Pires