Ele finalmente me superou. E agora? | Do Amor #185

Botei meu melhor vestido. Aquele apertadinho e branco, com motivos de limão siciliano pintados aos borbotões, do colo à barra que batia mais ou menos quatro dedos acima dos meus joelhos lindos. Eu fico leve quando o visto, quase atravesso as avenidas flutuando, o que facilitaria muito a vida dos motoristas que precisam diminuir a velocidade pra me contemplar passando estampada com a fruta cítrica e duas folhas enormes brotando na cintura e também nas costas. óculos escuros enormes na cara, os cabelos presos lá no alto e separados em duas mechas que me faziam parecer uma Lhasa Apso da dondoca mais abastada do bairro. Desci minha rua e dobrei à esquerda.

No café, preferi uma mesa na calçada. Depositei os óculos na mesinha redonda junto com o livro que levei pra não ler. O lance ali seria esperar minha xícara de caramel macchiato enquanto perambulava os dedos na tela enorme do meu celular de três câmeras, adornado mais que protegido por uma capa emborrachada roxa, com anel magnético para me ajudar a sustentar seu peso. Cruzei as pernas e me deixei passar bons minutos lendo. Atiçada pela movimentação, mantinha um gostoso ritual de pressionar os dedos dos pés no liso da base da sandália, um vai e vem que sempre me acalmou. Mandei mensagens bem dispostas pro gatinho que eu estava vendo. Mandei selfies vistosas, publiquei a que me agradou mais. Falamos do nosso último encontro, da mordida dele que ainda marcava o canto da minha barriga. Imaginá-lo distraído no trabalho dele enquanto pensava em mim, retirando da caixinha de memória recortes em loop das cenas que montamos juntos deixava meu dia melhor. Pedi uma água com gás e me arrumei na mesa. O dia me dando tudo o que eu merecia.

Lá dentro, no balcão, o disco que tocava desde que eu havia chegado entrou no seu final e parou. Segundos de silêncio musical, que foi engolido pelo sibilo cotidiano de gente falando, gente pagando, pessoas e máquinas interagindo como sempre se foi. E aí o disco que se iniciou em seguida foi aquele da Norah Jones que eu não ouvia, sei lá, desde dois mil e dois. "Come away with me". Uma delícia. A voz dela me invadiu as lembranças e arrancou de lá pequeninas dores, amarguras vencidas de um cara que não queria mais sair comigo. Com os dentes, eu passei a morder a pontinha da minha língua, uma satisfação nanica, mas poderosa, de me perceber a mulher que havia me tornado, não aquela criança que se deixava levar pelas situações, mas alguém com maturidade e, acima de tudo, serena. Eu estava bem. Melhorei a postura na cadeira, abri a tampa da garrafa plástica da gasosa e despejei um tico dela no copo. Levantei-o na boca num tapa, como um shot e respirei aliviada. Pedir mais um café seria a ótima pedida do dia se não fosse o que vi quando me virei para enxergar o garçom no outro ambiente, o interno. Lá, recém sentada numa mesa de canto estava uma bela garota, recebendo delicados solavancos nas pernas para ficar confortável com a cadeira que o rapaz estava colocando atrás dela. Essa parte foi tranquilo de ver. Só que o rapaz era um ex-ficante meu. Um cara que conheci na fila do cinema e acabamos ficando dias depois. Ele era uma graça, usava calças de alfaiataria com camisetas  coloridas de frases irônicas. Quantas de nós não se deixou levar por essa figura, certo? Mas paramos de nos ver tinha oito meses, quase um ano, escolha minha, Tive o que queria daquela relação, Ele era fofo, o manteria sempre no meu seleto grupos de caras que a gente não odeia, só não tá tão afim assim.

Lá dentro, eles conversaram, riram e experimentaram o café um do outro. Os olhos dele faziam movimentos perseverantes, com a mesma sinuosidade curiosa com que ele olhava para mim quando a gente saía juntos. Como se toda e qualquer informação, texturas e pigmentos fossem importantes, dignos de serem guardados na mente. Um doce. A gente se sente relevante quanto alguém nos olha assim. E era assim que ele prestava sua atenção nela. E não mais em mim. Quando terminamos, digo, nos dias seguintes aos do fim que eu dei para o que a gente estava tendo, ele tentou falar comigo algumas vezes, mensagens primeiro pedindo mais um encontro, um último, solicitando cinco minutos para ele entender melhor. Não houve, do que me lembro, nenhum abuso, insistência. Ele sempre deixou espaço para meus afastamentos. Mas acho que ele não queria que nosso namorico pudesse ter se encerrado por alguma falta dele, por alguma lacuna que ele pudesse ter deixado aberta. Então ele tentou. Chegou a escrever mensagens subliminares em suas redes, motivacionais que, para outras pessoas, era algo corriqueiro de postagens, mas que eu entendia as cifras, o significado, a tentativa de me avisar que ele gostava de mim, que por ele, não precisava acabar o que estava acabando. Eu o ignorei solenemente até que cessou. E agora ele havia me superado. Havia outra para ele trocar aquelas ternurinhas.

Me levantei e saí correndo sem pagar. Chorando.

Jader Pires