Acordar carente sem saber de quem | Do Amor #184

Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, encontrava-se em sua cama metamorfoseado numa carência monstruosa. As vontades devoravam-lhe as pernas, marcas arroxeadas auto-infligidas com as unhas, marcas pelo corpo, barriga, peito, pescoço. Tivera sonhos grosseiros, a noite toda se virando para o outro lado em busca de quietude, mas só encontrava o ato contínuo: trepava, trepava e trepava. Sonhos molhados, era tomado por braços, sempre os mesmos braços.

Quando conseguiu se desvencilhar da cama, correu para o banheiro e o que viu no reflexo do espelho foi uma figura surrada, empapada em suores azedos, os olhos carregando um par de bolsas enormes. A fraca luz amarela da arandela deixava-o com um ar ainda mais enfermiço. Em vez de o merecido descanso, a noite lhe proporcionou uma intensa andança. jogou boas doses de água na cara, a pia lavada, o chão ao redor. A necessidade de se lavar, se ver um tanto mais puro fazia seus movimentos tomarem mais força que o necessário. Foi até a cozinha e fez café. Sentou-se na poltrona escura que ficava virada de frente para a janela grande da sala. Estava ali para se usar em momento como aquele, de reflexão. E também para leitura. O amigo que morava com ele ainda não havia acordado, então teria bons minutos para recompor-se da fadiga da madrugada. Procurava organizar os flashes que lhe chegavam como quem encaixa as peças do quebra-cabeça, cores com cores, ações com ações. Ele levou pancada, virou-se de costas, deixou-se ser enrabado e a dor que lhe subia era proporcional ao apetite que tinha. Mandou que fizessem mais, que botassem mais. Grunhiu encurralado, Esquivou-se e correu para ser novamente capturado. E ria. E ria. Mas sempre ao evocar de novo a consciência, os músculos exaustos pediam repouso, mas as quimeras sexuais insistiam em tragá-lo de volta à sua Sodoma e Gomorra particular. As casas eram diferentes, os cômodos eram outros, mas havia sempre um ponto em comum, a pessoa que o possuía mantinha-se em cada quadro, com a mesma competência de antes, incansável. E então ele saltava sobre ele, esfolava-lhe as costas, e bunda com sua barba descortês, era estúpido e delicioso, ordenava para que as outras vozes que os chamavam se calassem, falas conhecidas de amigos, da mãe dele, do amigo que morava junto com ele. Todos deviam aceitar que ele era propriedade daquele que insistia em retornar pedaço de sonho após pedaço de sonho.

Sentado na poltrona, pressionava os glúteos para garantir que estava ainda inteiro, que tudo não passara de uma ilusão do sono. Só que as horas seguintes foram de desconforto. Não nas nádegas, mas a ansiedade do café juntamente com a busca incessante de saber com quem sonhara, qual foi o rapaz que tanto bem lhe fez no subconsciente. Buscava os traços, a entoação confiante da voz, o hálito frutado que ele tinha. Nada era o suficiente para completar a cena, para definir que havia passado a noite com aquela pessoa específica. tentou encaixar nas lacunas ex namorados, aquele cara do Tinder que deu um tremendo cansaço nele em Maragogi, um professor da época de faculdade que ele tinha um tesão danado. Nada. Baixou as expectativas e fez uma fila contendo os caras que já trabalharam com ele, o garoto que o atendia bem cedo na cafeteria perto do escritório. Não dava para bater o martelo, Para apontar para essa centena de possibilidades e dizer "é ele'. Perambulou pelo apartamento com sua carcaça exaurida, descalço, contando os tacos no chão, assistindo aos desenhos animados de pau duro.

Por dias cruzou os dedos da mão direita com os da mão esquerda fingindo ter alguém para se segurar, aquela pessoa com quem sonhara, por quem estava secretamente apaixonado. Seria ele seu parceiro ideal, a alma gêmea que supriria todas as fissuras em sua dura vida. Mas ele não sabia quem era. Não tinha matado aquela charada. Alguém, próximo ou um estranho, era impossível afirmar. Restava só a lembrança da mão grande que controlava os movimentos dele, que direcionava com o indicativo onde ele deveria estar. E ele obedecia. De novo. E sempre que pensava naquela pessoa misteriosa.

Jader Pires