Eu tô sofrendo por não ter por quem sofrer | Do Amor #209
Esticou a roupa de cama com o mesmo esmero que tinha para chupar uma boceta, devagar e altiva, cuidando para que todo o espaço sob seus cuidados fosse competentemente bem tratado. Lençóis ajustados, borrifou três vezes a essência de bamboo ao mesmo tempo em que elogiava na cabeça os metais interessantíssimos no novo disco da Indigo de Souza, uma americana filha de brasileiros que tinha lançado seu terceiro álbum naquela semana e, naquela altura, já tava na faixa cinco ou seis.
Tomou uma ducha demorada e hidratou as tatuagens novas com uma pomada. Vestiu um maiô e escancarou todas as janelas, queria ser beijada pela ventania que o corredor de prédios fazia e deixou atenção em cada uma das plantinhas que tinha em casa, vinte e sete na sala, duas no banheiro, oito no quarto e mais oito no segundo cômodo que usava meio que como escritório, meio como salinha de ioga, além de outras quatro suculentas que só deram certo na meia luz da cozinha, banhou as que careciam ser molhadas, limpou com um paninho as que acumularam a poeira dos últimos dias. A luminosidade solar a perseguia, tentando agarrar seus calcanhares pelo chão de taco escuro. Os pés descalços fincados no tapete, dedos atritados contra outros dedos, as mãos trabalhando com afinco para que os longos cabelos desgrudassem das costas a cada espaço de poucos segundos. Bateu uma siririca sem pressa sentada num travesseiro, depois se gravou em algumas poses arrumando o traje na linha das ancas. Gostar de se ver e se encostar era metade do caminho de um dia bom. pegou um caderno de anotações e escreveu com a letra arredondada e bem deitadinha nas linhas da folha essa e outras frases soltas que lhe dava na telha, pequenas poesias, afirmações e conversas teatrais que poderiam ter existido em algum bar em Bali ou na Catalunha, debaixo do Minhocão em alguma madrugada de garoa.
O estalo a fez levantar-se num sopetão. Agarrou o celular e reviu as últimas gravações que fez mais cedo. Escolheu a mais deliciosa e botou uma das frases que escrevera junto. Era a chamada perfeita para uma foda de tarde toda, de noite completa, de fazer querer ficar coladas sobre o colchão suado de tanta putaria, fumando uma tora de maconha atrás da outra e competindo para ver quem colocaria o melhor som na caixinha da JBL perdida entre as colchas, entre coxas avermelhadas de mordidas e tapas. Seus olhinhos diligentes calculavam o espaço entre letras e pernas, aspas e tecidos, repetições dos movimentos e quanto mais bonito ficava, mais a mistura de suco gástrico e fumaça de tabaco se acumulavam no estômago, uma pasta que teimava em tentar subir pelo esôfago junto com as palavras "mas você não tem pra quem mandar essa porra!". A espuma viscosa entre os dentes, os pedregulhos d'água que grelavam dos olhos dela, lágrimas gordas empapando a costura do maiô na altura do pescoço, o sofrimento de não estar sofrendo por ninguém, nenhum contatinho que veria o vídeo delicioso dela e faria pouco caso, para que ela pudesse costurar maneiras de encontrar a garota de seu desejo, assim, causalmente pensado, sem querer para uma, planejado desde o início pela outra, qualquer ex que tivesse dito que o problema não era uma, mas a outra, alguém que tivesse pedido espaço, um distanciamento para que ela vencesse a barreira do silêncio com um vídeo maravilhoso, uma fotografia nua impecável ou seus textos de impacto na libido de qualquer mulher.
Ela estava bem e todas as parceiras anteriores estavam bem também. E foi isso que começou a mastigá-la, a sorte do amor tranquilo lhe parecia, naquela manhã, maldição. Como assim ninguém estaria em sofrimento por causa dela? Como poderia neste planeta não haver quem desse o braço a torcer recebendo um convite dela e corresse até aquele apartamento largado família ou carro parado no meio do trânsito?
Botou, com pesar, os maiores óculos escuros que tinha. Salvou o vídeo para publicar nos seus melhores amigos mais tarde. Meteu um shortinho de futebol azul de listras brancas laterais por cima do maiô e foi comprar um antiácido na farmácia.