É disso que se fazem os heróis | Do Amor #208

"Caralho, isso aqui é coisa de herói!". A frase nunca mais saiu da cabeça dele porque sua senhora não era dada nem a elogios tampouco a proferir palavrões no meio rua, assim, em público. Mas a atitude dele tirou da boca dela tanto o elogio quanto o ato falho.

Acontece que tudo se passou rápido demais, a rua atarantada de carros, o vai e vem, a espera para atravessar, um borrão escuro na visão periférica e o Corsa dois mil e seis prata chegando rasgado. O empurrão. Ele não pensou duas vezes, saltou para o lado e segurou a pobre alma que certamente perderia a vida na via, sucumbiria debaixo do corsinha. Mas ele foi mais ligeiro, cavaqueou com a pessoa pela calçada, ralou as mãos, a camisa lindona da seleção brasileira que ele usava rasgou bem na costura, debaixo de uma das axilas. Mas a mulher estava a salvo. As pessoas ao redor perceberam o gesto hercúleo e generoso dele e foram ao seu encontro, levantaram-no e puseram de pé também a coitada da moça que disse se chamar Magdalena. Enquanto os transeuntes saudavam-os com uma salva de palmas enérgica, o homem se incomodava pelo nariz, tentando entender que tipo de asco havia colado nele. Era o cheiro da mulher, uma esfarrapada em situação de rua que ficava pelas imediações ali da padaria pedindo um qualquer para comer. O aspecto oleoso do rosto agradecido dela deu tonturas nele, dois homens que saíram da lojinha do coreano vieram acudi-lo, tendo o ledo engano de pensar que o desfalecimento do homem se dava pelo intenso stress ao qual havia passado ao salvar a vida de outra pessoa. Mas a força que lhe faltava nas pernas era pelo odor acatingado que levaria sua mente à constatação: tinha salvo o tipo de pessoa que, por ele, não precisava ser salva, ao contrário, se sumisse das ruas que ele frequentava, mais, se desaparecessem do mundo, a Terra seria um lugar bem melhor.

Mas calou-se. Nas temperaturas elevadas do momento, sua esposa então botou-o como herói. A pequenina multidão que àquele momento acumulou-se perto da esquina onde estavam também. Recebeu tapinhas nas costas, rápidas reconstituições que o botaram em memórias cada vez mais corajosas, uma façanha para poucos. A Magdalena, que naquele momento já havia sido esquecida pelo público, se embrenhou naquele punhadinho de gente e agradeceu, as mãos em concha sustentando os calos proeminentes das mãos recém machucadas dele. Perguntou se alguém teria um qualquer para que ela pudesse matar a fome, mas não escutou voz alguma lhe respondendo de volta. A esposa do grande homem do momento seguia repetindo em êxtase que ele era um herói, o sorriso bailarino dançando na boca grande e a voz ciciosa no ouvido dele "eu te amo, meu valente, eu te amo". Num rompante de ousadia, até confessou uma coisa ou duas que gostaria de fazer com ele como prêmio.

Os dias que passaram foram de reconhecimento, o homem ficou famoso. Acumulava congratulações, passou a não pagar pelo pingado na padaria, nem pelos pães, "leva, o senhor merece, o nosso herói, toma mais dois aqui pra sua patroa". Na rua, a Magdalena continuava a rotina de solicitações. O cheiro dela ainda impregnado nas narinas dele, coçadas automaticamente ao se lembrar do grude do abraço dela nele. O coreano, dono da lojinha, que até então ele achava se tratar de um chinês, apareceu gritando o nome dele no meio da rua. Não poderia confirmar, mas jurava de pés juntos naquele instante que o proprietário da bomboniere trocava uma letra ou duas do seu nome. Puxou-o pelo cotovelo até seu estabelecimento, um mini mercado com doces e sorvetes, uns potes esquisitos, umas letras estranhas. Mas o que o coreano queria era lhe mostrar uma singela homenagem. Atrás do balcão, lá no alto, a bandeira do país dele, antes protagonista, agora dividia espaço com as cores verde e amarela da bandeira brasileira. O coreano gargalhava alto e repetia que o herói do bairro tinha deixado ele mais brasileiro, que ele tinha orgulho de ter se mudado para perto dele, um homem notável que salvava vidas, que ajudava as pessoas. O defensor por acidente não sabia bem onde botar as mãos, com receio de derrubar algo naquele grande acúmulo de produtos duvidosos, o ambiente mal iluminado voltou a lhe dar a tontura daquele outro dia. Pediu escusas, foi para casa atordoado. Em sua cabeça ele não era herói, ao contrário, atrapalhou a natural ordem das coisas, podia ser que àquela altura uma mulher problemática a menos estaria no mundo e o cara que não falava direito o nome dele podia estar mais desgostoso da estadia dele neste país, pronto para arrumar as malas e voltar para a península da qual nem deveria ter saído.

Chegando em casa, sua mulher tinha no rosto o mesmo sorriso engraçado do outro dia. Tinha nas mãos a camisa da seleção, preferida de seu marido. Havia costurado bem costuradinho o buraco da axila. O homem, com a camisa nas mãos, notou manchas minúsculas muito perto da gola, meio avermelhadas, um alaranjado estranho. Botou na cabeça que eram gotículas venenosas que saíram da boca deletéria daquela sem serviço fedida. A imagem da mendiga rondou seus pensamentos, ele vomitou. Em cima da camisa costurada. Sua senhora correu para auxiliá-lo, mas ganhou de volta um empurrão. Não era mais, a partir daquele momento, para chamá-lo de herói ou qualquer coisa que valesse. Se mudariam naquele mês, se tudo desse certo, ainda naquela semana. Se ela não quisesse ir, disse o homem, que ficasse. Ela, o chinês, coreano, japonês, o diabo que fosse, a Magdalena e a porra das mãos dela, a fome dela, a vida salva dela. Fossem todos para o buraco de onde não deviam ter saído.

A dor do infarto que se iniciou ainda na saída da lojinha não o deixou terminar de subir as escadas. No hospital, quando acordou, sua esposa não tinha ido visitá-lo fazia dois dias e na cama ao lado uma mulher recebia alta da enfermaria e ganhava um beijo gostoso de sua namorada.

Jader Pires