O amor complica as coisas, o amor salva todas as coisas | Do Amor #200

Seu Décio é um acumulador. Chegou a ser diagnosticado anos antes, quando tudo ainda era muito novo, a visão do problema como uma compulsão, a rotina ansiosa e violenta como um transtorno. Foi-se acabando o abraço no fim de tarde na Dona Nena e os dias passaram a ser de sobrados pacotes vazios pelo chão, isopores ensanguentados do açougue na rua de trás. Vinte e sete anos de casamento jogados no lixo, ou melhor, enterrados nas sobras, na imundície. O homem foi expulso de casa.

Na rua, foi de marquise em marquise, da frente de floricultura para os fundos de um mercadinho chinês. Mas, onde quer que fosse montar abrigo, dos males da mente vinha o lixo. Trazia para o pátio, no meio da calçada um forte de detritos, caixas molhadas de papelão e toda a sorte, atrapalhava o passeio, esvaziava os comércios e, assim, mais uma vez era chutado. Procurava outro lugar, o mais limpinho, mais correto. Mas seu coração estava cheio de entulhos. Falava sozinho, os cabelos foram se desgrenhando pela falta de corte, a camisa polo escura e puída, um singelo uniforme do maior trabalhador que aquela avenida já viu. Se albergou, enfim, ao lado do ponto de ônibus. Era uma construção de ferro e vidro, com um banquinho para duas ou três pessoas que poderiam se proteger do Sol logo abaixo da cobertura metálica. Mas o odor do acúmulo foi esvaziando pouco a pouco o quarteirão, a população passou a caminhar mais uns quatrocentos metros para tomar a condução um ponto adiante. Ali, reinava o Seu Décio e seu castelo de embrulhos e trouxas. Mas, com um olhar um tico mais atencioso, via-se de fato uma estrutura, uma ordem. As coisas não só chegavam e eram atiradas umas em cima das outras, não, um estudo era sempre feito, parecia mais uma cooperativa da balbúrdia. De fato, Seu Décio justapunha madeira com madeira, papel pardo com papel pardo, angariava em torno de si uma redoma fétida, mas organizada, dormia lá dentro, conversava com as vozes que atormentavam sua cabecinha ao lado de um pôster desbotado de festa de casamento, um rapaz de cabelos raspados sorria ao lado de uma moça com um diadema todo brilhante sobre a cabeça.

Mas, a cada duas semanas, as assistentes sociais vinham ter com ele, tentar convencê-lo de desistir da errônea tarefa de se ver envolto à sujeira, ao delírio. Falavam com ele, lhe davam conselhos e, no meio tempo, a prefeitura levava embora todos os seus estimados pertences, cada saquinho vazio de bala, todos os vidros de massa de tomate que ele empilhava lado a lado, cuja alegria lhe dava quando o sol rebatia colorido dentro deles lá pras cinco da tarde. Ao fim da quinzena, ele se via sem nada, nu no meio da rua, e chorava o restante da noite. Na manhã seguinte, nosso Sísifo do capitalismo tardio se levantava cantando para mais uma empreitada. Voltava para a calçada ao lado do ponto de ônibus com uma gaveta sem móvel. Depois, três potes grandes de açaí, gordos, roxos, chamavam bastante a atenção. Foi juntando jornal velho com tubos que antes carregavam em si grandes guardanapos. Encontrou e trouxe para sua calçada até um computador completo, sem funcionar, obviamente, mas monitor, teclado faltando um botão ou dois, o mouse de bolinha e um gabinete bege sem peças dentro. Foi tudo juntado quinze dias depois e levado pelo caminhão da limpeza, depois de quarenta minutos de sermão que ele deu nas atenciosas moças da assistência social. Rodou pelas ruas adjacentes com sua camisa polo preta puída, a calça de moletom também escura e descalço, as calçadas geladas do fim de abril.

À noite, encolhido atrás do ponto de ônibus, juntava as parcas forças para no dia seguinte recomeçar sua campanha. Baixou a cabeça entre os joelhos e, no chão, percebeu um reflexo se aproximando. Era uma silhueta familiar. Sua esposa, Dona Nena, vestindo um casaco pesado, a noite seria fria. Ela não tirou o capote nem lhe ofereceu a proteção para a geada. Conhecia bem a única obsessão do marido, a calmaria não lhe chegaria com o corpo esquentando, mas com a pedra filosofal de seus desejos. Ela chegou mais perto dele e, sem dizer oi, lhe estendeu a mão com um tesouro. A embalagem amarela clássica dos bombons sortidos. Vazia, claro, mas muito bem conservada, cada cantinho bem preservado, sem amassados ou partes descoladas. Ele a depositou no meio da calçada e se sentou exultante ao lado. Os olhos em brasa. "Eu te amo" ele disse, olhando para o invólucro industrializado. Dona Nena levou a jura de amor para si.

Jader Pires