Nada melhor do que não fazer nada com você | Do Amor #201
O Roberto sabia que a Rita estava para morrer. Mas com ela, nada era sobre a morte. Com a Rita, tudo vida. Tudo vivia. Então, assim que despertava logo cedo, um pouco depois do sol botar as caras, mais ou menos, ele colocava em prática seu costume de esfregar os pés dele nos pés dela, um carinhoso aviso de que se levantaria em breve, e fazia café antes de qualquer outra obrigação. Lhe dava sorrisos e leveza saber que ela dormiria um pouco mais manhã adentro. Já há muito tinha se isentado de obrigações, aposentada, mantinha apenas uma única incumbência: namorar seu companheiro. Cuidavam juntos das plantas, se espalhavam pela casa quando um ia ler e o outro tinha louça para lavar. Combinavam de cada dia um deles fazer as escolhas dos discos que ouviriam. Às vezes separavam vinis ao lado do aparelho de som, mas também sabiam montar listas no aplicativo do celular, comodidade das tecnologias. Ele cozinhava, ela cuidava das plantas. Ele vestia as meias nela, arrumava-lhe o turbante vinho na cabeça e ela cuidava dos cafunés enquanto repassavam, deitados na cama, as tarefas que precisavam fazer fora do sítio. O plano era sempre ajustar tudo o mais aglutinado possível para ficar o menos tempo que lhes cabia fora da redoma de amor deles, dos sapinhos de barro, pintadinhos de verde claro e verde escuro, que figuravam pelo jardim, as gravuras e desenhos que eles faziam um do outro espalhados pelas paredes do corredor ou na sala. Multicoloridos, vivos, vermelhos berrantes, óculos escuros de armação laranja, tudo muito tecnicolor, tudo muito tutti-frutti.
Brincavam com os netos nas visitas semanais, colo e doce, ela falava uma enxurrada de palavrões baixinho para eles rirem e tinha também dança no tapete, a mesma peça felpuda que, mais tarde, quando as crianças iam embora, eles de vez em quando ainda transavam antes de tomar o banho de fim de tarde. Daí picavam legumes, tilintavam a colher na xícara com capim-limão, assistiam tevê e dormiam. No friozinho da aurora, ele passava os pés dele nos pés dela e ia lá fazer café.
Mas a Rita adoeceu. Já tinha, ela, uns anos mais sensíveis, os olhinhos quase nada mais perdidos, avoados, a voz mais comedida. Daí o câncer. Seu Jair, como apelidou aquilo que só faz mal quando vem ao mundo. Foi diagnosticada, voltou para casa, cuidou do que dava para cuidar e deixou o não se podia não deixar. Intensificou seus cuidados com o amigo de quase meio século, posava para ele, ou melhor, para os olhos dele, quietinha, imóvel, para que ele pudesse ter muito repertório para retê-la nos olhos dele. Não que ele precisasse de mais material para tê-la na memória. Mas lembranças frescas só fariam bem. E o dia dela só ficava completo com as miradas de bons minutos em silêncio que ele fazia nela. Daí ele abria a boca, finalmente, e contava alguma recordação antiga, algum hotel que dormiram juntos, algum ginásio em que o show fora péssimo. Riam e iam juntos para a banheira. A respiração desnivelada dela já demonstrava uma vontade inerente de deixar o ciclo da vida tomar conta das coisas. Não falavam de morte, não porque havia um medo no ar, mas porque o tempo lhes era precioso demais para gastar com o óbvio. Desembolsavam aqueles maravilhosos segundos com afáveis esfregadas com sabonete nas costas e shampoos cheirosos na cabeça, perfumes de jabuticaba.
Nada melhor do que não fazer nada.