Minha vida amorosa é uma senha na fila de espera | Do Amor #202

Era um 704 impresso naqueles papéis que sujam as mãos. Eu deveria me sentar e aguardar que o mesmíssimo número aparecesse na tela em vermelho, indicando o guichê ao qual eu deveria me encaminhar para, enfim, documentar meu pedido. Mas como prestar atenção numa senha quando a cabeça está na maldita da Benerine e nos peitos que ela não quer mais me dar? No cinema ou na tevê, esse seria o momento de um time-lapse, aquela passagem rápida de tempo em que a personagem está sentada, as pessoas se movimentam rapidamente e a luz serpenteia o ambiente trocando de lugar. Tudo muda, até meu humor, só eu mesmo que fico no mesmo lugar. E as senhas aparecendo de forma completamente aleatória, assim como as lembranças dela e dos peitos dela. 107, 108, 912, 483, 486. Nada que começasse com 7 para eu descobrir o quão fodido eu estava. 

Um drama em informes sonoros. A tela apitava um agudo chato e todos depositavam no ruído seus anseios. Era como se o monitor pregado no teto fosse uma cabra de ouro, um ídolo profano o qual todos daríamos a vida em sacrifício pela graça alcançada. Eu daria uma vaca inteira pra voltar para os peitos da Berenice, o sorriso dela torto, doce, todo meu, pra mim. Cada mudança de sequência numérica era secretamente comemorada por quem se levantava enquanto a massa, mais uma vez, arrefecida de ombros caídos na sensação amarga do recomeço. 

O resumo da vida em uma sala de espera. 

A ânsia batendo de frente com a realidade. A fila do pão, entrevistas de emprego, o trânsito na Av. Rebouças. Cada movimentação é um lampejo de esperança. Aquele "oi" que a garota do escritório que trabalha no andar de baixo te dá quando vocês se cruzam na escada. A garota do meu trabalho se chama Berenice. Ela tem peitos lindos. Agora todos os dias ela passa reto por mim, uma tristeza, frustração atrás de frustração. Isso até ela, no meio da pressa, encontrar tempo ou disposição para sorrir mais um sorrisinho pra mim. 

701! Minha senha existe! Tá chegando nela! 

Pavlov teria orgulho e aplaudiria de pé por minutos a fio. "Plim", e todos olham. Cabisbaixos. "Plim"! Todos olham. Cabisbaixos. Mas a saliva ainda escorre. 702! Meu deus, nunca me senti tão próximo da vitória! 

Pessoas se levantam, nova gente se senta. "Pim"! Todos olham. Não é nem uma situação de esperar a derrota iminente. Você já entra vencido no recinto, passivo em seu insucesso. A fome bate e estamos desprevenidos, levanto para jogar uma água no rosto e o som mostra o 703! Sou o próximo! 

Começo a compadecer pelos que estão lá comigo, na árdua tarefa de aguardar. Fracassado após fracassado a sala vai enchendo ainda mais e eu queria que todos pudessem ser os próximos feito eu, que todo o sofrimento naquela sala se dissipasse por completo, que, juntos, pudéssemos superar mais essa adversidade e... 704! Eu grito no meio da sala de espera "Berenice, eu sou seu cachorrinho! Eu te amo! Eu volto pra você num piscar de olhos!". O povo todo me dá aquele olhar fulminante de julgamento. 

Chupa, seus otários! Eu vou é resolver a minha vida. Primeiro esse pedido aqui e depois a Berenice.

Jader Pires