Eu jamais te faria mal. Você me completa | Do Amor #226
Se fosse contar a alguém o ocorrido, poderia jurar de pesadas botinas juntas que pôde escutar o estampido interno que a costela quebrada dela fez ao receber dele a certeira patada entre a quarta e quinta vértebra. "creque”, uivaram os ossos partidos em dois após o chute. Ao menos ela aquietou de vez depois da fratura. Foi se encolher no canto da sala, atrás do braço da poltrona, a tevê ligada quase no volume máximo, os melhores momentos do jogo entre dois times e nenhum era o dele. A boca dela, antes carnuda e sedutora, agora era um amassado de carne, o sangue que vertia denso dos cortes fazendo as vezes de batom e ele assumiu para si que ela ficava mesmo ótima com a boca escarlate, uma das primeiras proibições impostas no começo do namoro. O pai dela insistia em ligar, fazia a repetição dos berros que o telefone celular dela davam cada vez mais irritantes. Mas ela não atenderia, uma para não levar outro murro e perder mais algum dente, e outra que, se tentasse falar com os lábios estourados, provavelmente não seria capaz de dizer claramente uma só palavra, o que só prolongaria seu problema. Ele ir embora era, de longe, a melhor solução que ela podia pensar na cabeça que latejava depois das pancadas.
Ele passeava pela sala, cumpria de forma militar o zigue e o zague que o pequeno cômodo lhe permitia, os nós das costas das mãos ralados pelo atrito contra o rosto dela, a blusa de lã, os cabelos que entravam na frente quando ele repetia, soco após soco, que era muito, mas muito necessário que ela escutasse e aprendesse. Por isso o chute no canto da barriga, movimento feito no impulso quando os gritos dos dois ficaram embolados e ele não tinha mais a voz determinante na conversa. A insistência dela, o queixo levantado, os olhos de fuzil inquirindo sobre a moto que ele havia vendido, presente na cabeça dele, necessidade de locomoção para o trabalho por parte dela, ele já estava sem fogão, sem amigos, sem moral. A única pessoa que o visitava era ela, e ainda tinha a cabeça burra, ela disse cuspindo perdigotos com a intensidade da letra b, de transar com esse fiapo de homem. Foi o suficiente para a primeira muqueta, o rabo de cavalo puxado, o lóbulo direito sangrando o brinco arrancado com a violência.
“Para, para, você vai me matar”, ela repetia entre as pancadas. Ele parou na hora. Os olhos líquidos da atrocidade escutada. O braço tremendo a involuntária convulsão muscular do excesso de força, a testa exibindo uma faixa brilhante de suor e exaustão. O peito trabalhando sob a jaqueta tactel de um time inglês que ele nem sabia apontar no mapa. “Eu?", perguntou enquanto se agachava para ficar na mesma altura dela, encolhida atrás do sofá velho. “Matar você? Tá maluca?", sussurrou babando as palavras moles que lhe escapavam por entre os dentes. “Endoideceu de vez?". Ele chegou mais perto, as pupilas reluzentes da emoção. “Eu não posso, não, melhor, eu nem sonho com uma coisa dessas. Não posso ficar sem você, viver sem você". A sombra da cabeça dele foi ficando maior e maior com a proximidade. “Você me completa". E, após dizer sua declaração de amor, arrumou um tufo dos cabelos dela atrás da orelha que ainda não estava machucada.