Cê não quer uma cerveja não? | Do Amor #227
A luzinha alaranjada do microondas barulhento piscou três vezes. Seu prato girava, o caldo congelado do feijão começava a desmoronar por sobre o restante da comida, e a pequenina lâmpada lá dentro encenava o cumprir da parábola da vida, um vagalume solitário em seu derradeiro momento. Tomou na mão o celular e, desviando os olhos das rachaduras da tela, viu que um pirilampo tem expectativa média de vida de sessenta e um dias. Seria esse o provável tempo que ele levaria para trocar a luz do aparelho que requentava seu almoço. O ânimo lhe fugira, a estrutura metálica do eletrodoméstico refletia a palidez das maçãs dele, as sobrancelhas pesavam toneladas nas pontas de dentro, escorregando frustração pelo nariz torto. Coçava, e ele fazia movimentos circulares com a musculatura nasal sem mexer o resto do corpo. Uma espécie de economia de energia para, talvez, chorar mais tarde em posição fetal no chão, perto do sofá. Faltava dinheiro, queria ganhar mais, e ainda teria que gastar um tostão que fosse para voltar a iluminar a própria refeição na hora do almoço, a cozinha poderia ser melhor iluminada, pensou, a cidade não podia ter liberado a construção desses prédios sem recuo, as árvores estão caindo aos borbotões, não se vie mais samba na rua, estão matando todas as nossas alegriazinhas, ao menos, quando devia para o jogo do bicho, tinha uma interação com o administrador do ponto, agora, o tigrinho, uma frieza sem fim, pede tudo antes, não dá bom dia depois. A unha grande demais, mais uma vez, machucou seu machucado, uma brotoeja avermelhada que saiu debaixo do peito, naquele caminho meio costela meio barriga, um espaço de carne mais macia, uma mancha de três dedos, uns quatro centímetros, rosáceo ao redor, o borrifo, espaçadas bolinhas vulgares davam um relevo repulsivo, bolhinhas purulentas que às vezes erupcionavam silenciosas e faziam verter um líquido espesso, sem cor, sem cheiro. Secava o fluido na barriga e produzia uma casquinha transparente. Era o terceiro aviso que o microondas dava para alertá-lo que sua comida estava, em teoria, pronta. Será que ele deveria raspar os pelos do saco? puxou a calça e a cueca para ver a espessura dos cabelos pendurados no púbis, os excessos na virilha, a delicadeza dos fios mais claros nas bolas. Será que alguém ainda iria querer transar com um cara nojento que mete a mão no pau antes de segurar seu prato fumegando, que tem a unha grande demais, que se machuca coçando sarnas na barriga, um fodido que não sabe para onde correr, de onde tirar um pouco mais, um microondas sem luz, o google calendar todo bagunçado, cheiro de cigarro nos cabelos, o pijama puído, toda a sua roupa, o trabalho desgraçado, a construção no edifício ao lado, as chuvas levando tudo, mataram alguém no metrô, ficou sabendo, não no metrô, o metrô matou alguém, o rapaz virou papa, atropelado, e ele, por dois segundos, sentiu inveja.
"Cara", era a voz de sua esposa. “Acho que vou pegar uma cerveja aqui na geladeira pra acompanhar. Quer uma?". Ela sorriu.
Ele aceitou.